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Mostrando postagens de abril, 2020

Carpe diem

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Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje, ouviu Domingo berrar dentro da sua cabeça, quando o despertador o arrancou do sono como um choque eléctrico. Os seus olhos foram tropeçando pela penumbra quente do quarto até encontrarem, na nesga de sol que se esgueirara pela brecha da janela, a confirmação de que já passava das sete. Domingo ignorou o torpor nas pernas, as juntas emperradas de quem já não tinha vinte anos, ergueu-se da cama como se tivesse molas. Tanta coisa para fazer, recordou, a navalha na cara. A maldita mania de deixar tudo para depois. Domingo, que nunca na vida fora desses, nos últimos meses deixara-se cair naquela moleza, naquele desânimo. O que diria Glória se o visse assim. Mas Glória já não diria nada, era escusado. Por isso, iam ver, hoje tudo ia ser diferente. Hoje. Não passava de hoje. Luzia e Mariana limparam as mãos no avental e correram à sala assustadas, quando ouviram o barulho. Encontraram Domingo martelando a dobradiça da porta, que havia m

Uma tolice

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Marcos Abelardo em primeiro lugar eu queria dizer que compreendo muito que não me queiras ver nem saber mais de mim, conforme me explicou esta Pessoa por quem te mando esta carta. Mesmo assim tomo a liberdade de te escrever esperando que me perdoes por isso já que quanto ao resto sei que nunca me poderás perdoar. Sei que me tornei indigna de ti por isso não é para pedir amor ou compreensão que te escrevo e acredita que é pela última vez. Já estás a ser tão bom e humano aliás como sempre foste em não me entregares aos meus Perseguidores. Mas ainda espero do teu bom coração mais uma caridade que é uma vez por mês deixares-me ver as crianças num lugar seguro que indicarei pela Pessoa que é portadora deste pedido. Sei que não fui para elas uma boa Mãe tendo feito o que fiz sem pensar que as ia deixar nesta situação terrível. Sei também que não sou bom exemplo nem boa companhia mas uma Mãe não pode viver para sempre longe dos filhos e Deus que está no Céu não consentiria tamanho castigo

Bico de chaleira

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Devo a M. L. T., treze anos, coveira de profissão, a minha primeira espécie de iniciação sexual. A notícia da sua precoce gravidez provocou-me primeiro uma gargalhada, logo acompanhada de comentários sobre a crassa ignorância de quem espalhava tais baboseiras. Se com treze anos ninguém era ainda casado, e se para ter filhos era indispensável casar, a história ouvida na rádio, entre outros escândalos, casos curiosos, pequenos crimes, era obviamente um disparate. A cozinheira, que até então me ouvira em silêncio, enquanto picava as cebolas, sugeriu que talvez eu pudesse estar enganado, mas não quis aprofundar o assunto. Remeteu o caso para a minha mãe, a pessoa mais indicada para me prestar os devidos esclarecimentos. Minha mãe disfarçou como pôde o pânico face às minhas compenetradas perguntas. Sempre professora, explicou-me os factos da vida com tamanha correcção, com palavras tão precisas e escolhidas que no final da conversa a minha curiosidade se convertera em terror. Fiquei, no