Bico de chaleira

Devo a M. L. T., treze anos, coveira de profissão, a minha primeira espécie de iniciação sexual. A notícia da sua precoce gravidez provocou-me primeiro uma gargalhada, logo acompanhada de comentários sobre a crassa ignorância de quem espalhava tais baboseiras. Se com treze anos ninguém era ainda casado, e se para ter filhos era indispensável casar, a história ouvida na rádio, entre outros escândalos, casos curiosos, pequenos crimes, era obviamente um disparate. A cozinheira, que até então me ouvira em silêncio, enquanto picava as cebolas, sugeriu que talvez eu pudesse estar enganado, mas não quis aprofundar o assunto. Remeteu o caso para a minha mãe, a pessoa mais indicada para me prestar os devidos esclarecimentos.
Minha mãe disfarçou como pôde o pânico face às minhas compenetradas perguntas. Sempre professora, explicou-me os factos da vida com tamanha correcção, com palavras tão precisas e escolhidas que no final da conversa a minha curiosidade se convertera em terror. Fiquei, no entanto, com uma ou outra informação clara. Agora sabia, por exemplo, que era exigida a nudez dos participantes. Como só me constava que os meus pais se vissem nus no banho, deduzi que era nessa altura que praticavam o acto. Juntando outras pistas recolhidas aqui e ali, concluí também que era algo que se fazia sempre de pé, em meio a jorros de sangue, espumas variadas e outros fluidos de enigmática procedência. Era um alívio, portanto, saber que ainda dispunha de longos anos até o momento, certamente inevitável, em que também eu teria que passar por aquilo.
Entretanto, e para não ter mais surpresas, dei por terminadas as perguntas, e passei a evitar zelosamente qualquer conversa sobre o assunto. Acontece que, por mais que os ocultasse sob camadas de silêncio, havia sempre alguém para desenterrar as minhas dúvidas e mal-entendidos, expondo-me à humilhação e ao ridículo que eram o que eu mais temia neste mundo. Desafiado pelo meu irmão, por exemplo, a provar que já não era um fedelho ignorante daquelas matérias, audaciosamente declarei saber tudo. Estava perfeitamente a par de que o acto consistia na introdução, no órgão feminino, do seu congénere masculino, que ali comparecia para dar uma mijadinha. Tal demonstração de sapiência valeu-me uma rápida e penosa celebridade entre os colegas da escola. Até Ananias, o sisudo bedel que nos controlava os recreios, foi visto a contorcer-se de riso, enquanto passava adiante a minha triste anedota.
Era nessa fase do meu aprendizado que me encontrava, na noite em que se passa esta história. Era um sábado, dia em que os meus pais iam jogar cartas com uns amigos, e nós, ou seja, o meu irmão, Gilberto, Francisco e eu, saíamos para lugar nenhum. Perambulávamos pela vila, do café à praça, da praça aos matraquilhos, dos matraquilhos de volta a casa. Foi nesse sábado, que tinha tudo para ser igual aos outros, que alguém sugeriu a visita.
O mais provável é ter sido Francisco. Francisco não era só o mais velho de nós; era também o único que não tinha uma família como a nossa, pai e mãe, irmã namorando no sofá, o quarto da tia, o quarto da empregada, o curso dos dias perfeitamente regulamentado com as horas de comer, as horas de ir para a escola, as datas festivas com os seus almoços e presentes e visitas, a semana na cidade e os fins de semana no interior. Francisco vinha de outro planeta: o vizinho e tão distante planeta dos pobres. Era o mais novo entre vários meios irmãos, cada um dum pai diferente, e cada um com a sua vistosa desgraça. Havia um presidiário, um internado no hospital dos doidos, uma que apanhava dos sucessivos maridos, um que bebia, um que tinha morrido. Francisco, até então, tivera mais sorte. Era um menino inteligente, que aos doze anos já tinha que trabalhar mas frequentava a escola, ajudava a mãe e, o mais importante, era o meu melhor amigo. Nas nossas brincadeiras ainda éramos totalmente crianças: inventávamos e encenávamos, para nós próprios, histórias intermináveis, coleccionávamos gibis, pedras, esqueletos de pássaros. Mas ele, com a vida que tinha, sabia de coisas que nós nem sonhávamos – e aquela deve ter sido uma delas.
Hoje, ainda que o lugar não fosse tão diferente, ainda que não se tivesse transformado no subúrbio feio e violento que eu nunca mais quis visitar, já não saberia chegar lá. Mesmo nessa noite, quando julgava conhecer todos os caminhos, diariamente percorridos nas nossas brincadeiras, foi uma surpresa descobrir aquela casa com a luz vermelha na porta, que inexplicavelmente sempre estivera ali, sem que eu jamais tivesse dado por isso.
Era uma casa pobrezinha, desenxabida, escondida na estrada quase sem iluminação pelo mato que a cercava por todos os lados. Não era grande: foi num instante que lhe demos a volta, com o coração aos saltos, na arriscada tentativa de ver por algum buraco o que se passava dentro dos quartos. Mas as janelas, mesmo quando pelas frestas deixavam passar um pouco de luz, estavam todas fechadas. Todas excepto uma, provavelmente a de um quarto que acabara de ser desocupado e fora posto a arejar. Lá dentro, iluminada por uma lâmpada muito fraca, pendente do tecto sem nem a cortesia dum candeeiro, os nossos olhos arregalados só encontraram uma enxerga imunda, com um redemoinho de lençóis encardidos por cima e, na parede, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Mas mesmo essa janela não demorou a ser fechada – e assim, terminado rapidamente o reconhecimento do terreno, tivemos que nos contentar com o que podíamos ver e ouvir plantando-nos mesmo por debaixo da luz vermelha, à porta de entrada.
Era uma porta como havia muitas nas casas da vila, dividida em duas a meia altura, sendo que a parte de baixo só se abria quando ia entrar alguém – o que, sabíamos, não ia ser o nosso caso. Já a parte de cima ficava sempre aberta, o que fazia daquela porta ao mesmo tempo a barreira inegociável para as nossas pretensões de fedelhos e a janela por onde podíamos espiar à vontade. Apenas para descobrir que também ali dentro havia tão pouco para ver: nada mais do que a sala iluminada de roxo, com mesas toscas ocupadas por casais aos sussurros ou por homens a beber sozinhos, em volta da clareira com chão de cimento onde se dançava colado. Tudo ali parecia morto: a cerveja a chocar nos copos, os pares quase imóveis no meio da pista pequena e mesmo assim espaçosa demais para eles, o olhar semiadormecido dos homens refestelados frente às mesas.
Foi aliás entre esses homens, naquela luz colorida que nem chegava a ser uma penumbra deliberada, só watts a menos envolvidos por celofane e mariposas, que eu avistei Belmiro. Para a minha inocência deveria ser um choque: Belmiro era o secretário do colégio dos meus pais, fazia parte do mundo de adultos virtuosos, incapazes de pecado, em que eu ainda agrupava a família e todos os que lidavam com ela. Não era por isso concebível que se encontrasse ali. A verdade, porém, é que ao vê-lo a aborrecer-se naquela sala de espera melancólica, entre outros homens com cara de quem já estivera ali ontem, e amanhã ainda ia estar, o que senti foi mais pena do que espanto. Quanto a ele, se ficou constrangido, não se notou. Continuou a observar a fumaça do cigarro, as borbulhas que subiam no seu copo de cerveja, como se fosse perfeitamente corriqueiro encontrarmo-nos ambos, àquela hora, naquele preciso local.
Definitivamente, a emoção que procurávamos também não estava ali dentro, naquela sala soturna onde nada acontecia. Por um momento ficámos de braços caídos, a olhar uns para os outros, um meio sorriso na cara perplexa, sem querer ainda admitir a desfeita. À nossa volta espreguiçava-se uma noite enorme, quente, húmida, tão familiar afinal com os seus grilos, o vago cheiro a terra, a esgotos, a capim-limão. E nós ali, sem esperar mais nada.
Até que, de repente, o que havia para acontecer aconteceu. E aconteceu mesmo ali fora, no apertado círculo de claridade que a lâmpada vermelha desenhava junto à entrada. Porque foi ali, naquela porta-janela onde nos amontoávamos, sôfregos, que se vieram debruçar as raparigas da casa, aparentemente sem clientes, para matar o tédio e fazer graça connosco.
A partir desse momento, no entanto, na minha cabeça tudo se embaralha. Do que será que falaram? Do que se terão rido tanto, com elas, Gilberto, Francisco e o meu irmão? Dessa parte da noite que, até hoje, basta-me fechar os olhos para trazer outra vez à flor da pele, ainda prenhe de vozes, de bichos, de sobressalto, curiosamente apagaram-se todos as conversas, os factos concretos, a ordem arrumada das coisas. Lembro-me que eram gorduchas, que eram simpáticas e faladeiras. Lembro-me que tinham um ar muito caseiro, blusas de alcinhas, shorts, chinelos de borracha, e pareciam divertir-se a sério com aqueles pirralhos de voz fina e cara lisa, recém caídos do colo da mãe. Lembro-me que os meus amigos se divertiam com elas, respondiam às piadas, devolviam as provocações. Eu não.
De tudo o que se disse ou fez ali, nessa noite morna e tão distante, no meio dum mato que já não existe, entre boleros e vozes de sapos, só três palavras me ficaram. Ficaram, porém, como gravadas na pele – ardendo, latejando, e dissolvendo como um ácido toda a memória à sua volta. Só três palavras – e no meio da noite todas as sirenes soaram, todos os alarmes, todo o pavor.
Bico de chaleira.
Ela disse isso entre risos, provavelmente sem qualquer intenção de ferir.
Esse aí deve ser bico de chaleira.
Os meus amigos também riam, riam, riam. Enquanto eu, que era esse aí de quem falara a rapariga, sem que ninguém visse estava caído no chão, atingido de morte, com aqueles três ferimentos graves. Eu era bico de chaleira. Agora todos sabiam: eu era bico de chaleira. E o que será que isso queria dizer – bico de chaleira?
Na manhã seguinte eles ainda riam, lembrando as peripécias da noite – enquanto eu, como na véspera, fingia que não era comigo. Nesse dia, nos outros, e ainda por muito tempo depois, continuei a ouvir aquele eco na minha cabeça, como uma condenação sem apelo.
A minha segunda espécie de iniciação sexual foram essas três palavras. Mesmo quando, muito mais tarde, por fim percebi o que os homens e as mulheres fazem na cama; mesmo quando, juntando uma coisa e outra, julguei entender – embora sem muita certeza – qual era o bico, e o que teria de parecido com o de uma chaleira, e então me pareceu que eu quase certamente não era, nunca tinha sido, portador de semelhante atributo – mesmo então, a vergonha não me desceu dos ombros. Bastava lembrar-me, por qualquer razão, daquela noite do final da infância, com os seus insectos, os seus cheiros, o espesso calor, para a dúvida regressar, queimando. O que era aquilo que ela dizia que eu era? E se eu, afinal, fosse mesmo aquilo?
Naquela manhã do domingo, enquanto ainda riam da aventura da véspera, Francisco contou que junto à casa da luz vermelha passava um rio, onde, sabia ele de fonte segura, a certa hora da tarde as raparigas iam tomar banho. Eu, apartado da conversa, nada disse sobre a proposta, que aliás morreu ali, sem que ninguém se entusiasmasse. Ninguém, excepto eu. Durante largas semanas sonhei com o tal rio, fiz planos de lá ir, sozinho, ainda mais clandestino, sem nada dizer nem mesmo aos meus amigos. Mas nunca fui. Mais forte que a curiosidade, o medo comandava os meus dias. E se lá encontrasse aquela mesma rapariga, tão simpática, tão conversadeira. E se ela de repente se voltasse, enquanto eu a espiava escondido. E se, então, nua, me cravasse os olhos. E por entre os seus dentes se confirmasse a sentença.
Esse aí deve ser bico de chaleira.

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