Carpe diem


Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje, ouviu Domingo berrar dentro da sua cabeça, quando o despertador o arrancou do sono como um choque eléctrico. Os seus olhos foram tropeçando pela penumbra quente do quarto até encontrarem, na nesga de sol que se esgueirara pela brecha da janela, a confirmação de que já passava das sete. Domingo ignorou o torpor nas pernas, as juntas emperradas de quem já não tinha vinte anos, ergueu-se da cama como se tivesse molas.

Tanta coisa para fazer, recordou, a navalha na cara. A maldita mania de deixar tudo para depois. Domingo, que nunca na vida fora desses, nos últimos meses deixara-se cair naquela moleza, naquele desânimo. O que diria Glória se o visse assim. Mas Glória já não diria nada, era escusado. Por isso, iam ver, hoje tudo ia ser diferente. Hoje. Não passava de hoje.

Luzia e Mariana limparam as mãos no avental e correram à sala assustadas, quando ouviram o barulho. Encontraram Domingo martelando a dobradiça da porta, que havia mais de um ano estava fora do lugar. Para disfarçar a surpresa, disseram-lhe que tivesse cuidado, não se fosse magoar com o martelo. Domingo olhou duro para elas, ressentido com o comentário. Magoar-se com o martelo. Falavam-lhe como a uma criança, como se não fosse ele, desde sempre, quem tratava de tudo naquela casa. Bastara, aliás, que se desleixasse um pouco, naqueles últimos tempos, depois do que acontecera com Glória, para as coisas chegarem àquele estado: a casa num desmazelo, portas fora dos gonzos, lâmpadas que não acendiam.

A manhã inteira martelou, lixou, apertou parafusos. Nélio, enxotado da cama por tamanho tumulto, plantou-se ali ao canto, abobalhado como sempre, vendo o irmão trabalhar. Alberto, esse, nem bem acordou e já estava de saída. Era o costume. Mas, ao passar pela sala, deixando no ar o seu rasto de brilhantina e loção de barba, esticou para as tias o beiço inferior, num espanto: que bicho tinha mordido o pai?

Pelas onze e meia Domingo lavou a graxa das mãos e fechou-se no escritório. Quando Mariana o veio chamar para o almoço, resmungou que não tinha tempo. Tanta coisa para fazer. A irmã insistiu, mais tarde você termina isso; Domingo nem lhe deu resposta. Mariana desceu melindrada, cobriu-lhe o prato com um pano da louça, almoçaram sem ele.

Mas o prato ficou ali, intocado. Já tinham dado as três da tarde quando Domingo, sem dizer nada a ninguém, tirou do seu longo ostracismo a gravata, a bengala e o chapéu e saiu para a rua. Luzia, ouvindo bater o portão, foi à janela e avistou o irmão já lá em baixo, quase no fim da ladeira. Gritou para ele uma, duas vezes, mas Domingo não se voltou. Continuou muito rijo, muito determinado, a caminhar na direcção da cidade.

Luzia ficou ali parada, vendo-o cada vez mais distante, até desaparecer. Domingo nunca saíra assim, sem dizer onde ia. Era homem de dias e horas certas. Até demasiado, pensou. Enquanto Glória andou por aqui ainda lhe ia temperando o feitio, arredondando-lhe as regras, as certezas. Glória não tinha tanta conta e medida. Deixava-se ir, às vezes apoiada naquele marido sem dúvidas, mas quase sempre era ela quem o levava pela mão. Quando ela morreu, daquela sua morte comprida, que nunca mais acabava de a levar, Domingo pela primeira vez não soube o que fazer. Então não fez mais nada. Entregou-se de vez àquela sua forma de envelhecer, metódica e obstinada como o arrastar-se dum relógio.  Dias inteiros,  dedicava-se apenas a  vigiar tudo e todos:  quem se atrasava ao almoço, quem deixava as luzes acesas, as torneiras pingando.

Hoje, no entanto, acordara assim, resoluto, e era como vê-lo renascer. Luzia estalou as juntas dos dedos e olhou para o tempo, antes de voltar à cozinha. Na tarde opressiva, de tão clara, os bem-te-vis anunciavam chuva.


                                               ______                                                                                            


Domingo parou um pouco, apoiando-se numa pilastra, enquanto a vista, encandeada pelo verão lá fora, se acostumava ao interior do armazém. Sentia-se tonto; parecendo que não, fora uma longa caminhada. Mas ali dentro estava fresco, os sacos e caixas amorteciam o barulho da rua, e à sua espera, emoldurada por alhos, enchidos, cordas de fumo, a cara redonda e interrogativa do português era toda amabilidade.

Por fim aprumou-se, tirou a lista do bolso, deu o passo que faltava. Eram três folhas de papel manteiga escritas em letra apertada, com muitos riscos e emendas, contas a lápis pelos cantos todos. O português, vendo o que era, correu a buscar uma cadeira, que desempoeirou com o próprio lenço. Depois disparou a fazer perguntas, manhosas e açucaradas como o café que servira. Uma compra tão grande, tudo tão bem calculado. O senhor Domingo, que não dava ponto sem nó, com certeza tinha alguma na manga. Era uma coisa admirável, na sua idade, um homem pensar assim no dia de amanhã. Domingo mexia o café e desconversava. Tinha um negócio a resolver. Quanto mais cedo começassem, mais cedo estava tudo acabado.

E eram tantos detalhes. Como seria a entrega. Os dias e as horas. O custo. O português mordia o lápis, levantava-se, ia consultar uns grandes livros. Por fim, com uns gestos largos de mágico no picadeiro, desenhava numa folha de embrulho um número vistoso, que fazia Domingo saltar, ultrajado. Das primeiras vezes era a sério: lá porque tinha que resolver o assunto hoje, não queria dizer que aceitasse ser levado. Aos poucos, porém, reparou que tinha entrado no jogo. Às espertezas do merceeiro respondia com outras, fazendo fitas, regateando cada centavo como quem defende a própria vida. Quando conseguia o que queria, mantinha a cara impassível que trouxera, mas sentia o coração aos pulos. De repente esquecera-se da pressa. Já não se importava de ficar ali, naquela longa partida de xadrez, como se tivesse todo o tempo ao seu dispor.

Tinha perdido a noção da hora quando percorreu de volta o labirinto de prateleiras atravancadas de latas, barris, sacos de aniagem cheios de víveres, de onde saía uma algazarra de cheiros. Uns, ásperos, grudavam-se às narinas como milhares de agulhas. Outros lembravam almoços fartos, tardes antigas de modorra e preguiça, no tempo em que Glória governava o mundo. 

Domingo, no entanto, mal reparou que deixava tudo isso para trás, ao ver-se outra vez na rua onde caía a noite. Tinha a cabeça feita em números. Passava e repassava as peripécias do negócio, os lances que aproveitara, os que deixara fugir, numa excitação de rapazinho. Vinha tão absorto que nem sentiu as primeiras gotas, grossas como calhaus, que logo espalharam no ar um cheiro morno de terra agradecida. Em breve era o fim do mundo. O céu desabou de chofre, entre clarões. À sua volta corriam caixeiros em fim de expediente, carros alvoroçados faziam grandes ondas de lama. Domingo também pensou em correr, mas as pernas lembraram-lhe a idade que tinha. Puxou a aba do chapéu, tentando proteger os óculos; em vão. Então guardou-os no bolso, com os olhos míopes fitou a chuva de frente, deixou que lhe encharcasse as meias, entrasse à vontade pelo colarinho.

Quando chegou em casa, já havia velas para todos os santos que dessem notícia do seu paradeiro. Alberto, por muita insistência de Luzia e Mariana, largara o seu sagrado repouso e fora caçá-lo pelas ruas. Agora embrulhava a sua fúria em ameaças condescendentes: que o pai já não tinha idade para aquilo, que qualquer dia ainda acontecia alguma coisa. Domingo atravessou a gritaria como quem ouve a trovoada lá longe. Estava exausto, molhado até aos ossos, tinha sido um longo dia. Queria descanso.


                                               ______


Mas ainda era cedo para descansar, resignou-se, já seco, já com o pijama vestido, quando se sentou à escrivaninha para a tarefa que faltava. Inspeccionou o quarto: tinha posto sobre a cadeira, junto à janela, a roupa muito bem dobradinha, como se fosse para ser usada outra vez, ensopada como estava, no dia seguinte. Disparate, pensou. Manias de velho. Mas deixou ficar a roupa; limitou-se a balançar a cabeça, enquanto ajeitava a manga do pijama, destapava a caneta e, com um suspiro para ganhar coragem, começava a escrever.

Ter recitado tantas vezes, em silêncio, o que começava a pôr no papel tinha-o feito acreditar que agora seria como seguir um ditado. Mas a caneta rangia sobre a folha, parando, voltando atrás, seguindo outra vez em solavancos contrariados. O texto na sua cabeça fora mudando sempre, cada palavra, cada pedaço de frase com as suas muitas alternativas, e agora era incapaz de decidir, assim de uma vez, qual das versões era a definitiva. A bela página que imaginara, caligrafada sem esforço nem mácula, nascia afinal daquela maneira, feito um bebé prematuro. Domingo esfregou os olhos, ficou por um momento a desenhar espirais na margem do rascunho. Tinha sono. Tudo custava tanto. À sua frente o retrato de Glória, como sempre, ria.

A casa fazia tempo que mergulhara naquela mudez carregada de sons. Pelo forro do tecto chegavam a Domingo o ressonar das irmãs, os passos de Nélio a vaguear pelos cantos, adiando, adiando sempre o momento de se deitar. Domingo não queria passar a sua noite assim, fantasma indiscreto, ouvindo os ruídos alheios. Em breve Alberto chegaria. Domingo conteve um bocejo, pegou outra vez na caneta. Estava mais que na hora de acabar com aquilo.

Quando Alberto chegou, como de hábito, já era quase manhã. Oficialmente, quando saía à noite era para as aulas, embora, na verdade, ninguém lhe perguntasse onde tinha andado. Eram ainda os seus privilégios de filho homem, que a mãe desde sempre mimara e protegera, mesmo quando, já marmanjo, parecia ter gosto em fazer frente às  vontades do pai. Quem não consegue acabar o curso não passa a vida em noitadas, ouvira o velho resmungar tantas vezes, quando a mãe ainda estava ali para lhe prestar atenção. Depois que ela morreu, o pai olhava-o de lado, mas nunca mais disse nada. Naquela casa, aliás, falava-se pouco. Às horas que Alberto chegava menos ainda; já estavam todos a dormir, com excepção, por vezes, do tio Nélio. Mas esse era como se não fosse ninguém.

Hoje, porém, a casa estava toda acesa, como num dia de festa. Havia luz no quarto das tias, na janela do escritório, em toda a vidraça da frente. Alberto apressou o passo, abriu com força a porta da sala, onde uma pequena multidão lhe cravou os olhos. Tio Nélio, imobilizado à entrada do corredor, parecia estar a caminho, sem conseguir resolver para onde. Tia Mariana, sentada na pontinha no sofá, tinha uns olhos enormes e vermelhos. No meio da sala, entre dois sujeitos que Alberto nunca vira, tia Luzia estendia-lhe um envelope qualquer.

Estavam à sua espera. A ambulância tinha acabado de sair, levando Domingo, que às três da manhã pusera a casa naquele pandemónio. Nélio, que acudira primeiro, encontrara o irmão sentado na cadeira do escritório, olhando fixo para a frente, com uma das mãos largada ao lado do corpo, a outra a agarrar aquele envelope que Alberto, agora, demorava a abrir. Trazia escrito o seu nome, com o apelido e o título de doutor que ainda não tinha, numa letra muito enfeitada, como um diploma da faculdade.

O que Alberto encontrou lá dentro parecia um inventário de armazenista. Uma lista sem fim de mercadorias arrumada por secções: primeiro a alimentação, com os secos e os molhados, as carnes, a verdura, depois os utensílios de limpeza, barras de sabão, creolina, em seguida o carvão, o querosene e assim por adiante. As colunas à direita especificavam quantidades, sempre muito grandes, e datas, com intervalos de quinzena ou mês. Por fim, presa à última folha, havia uma página suplementar em papel de ofício, que Alberto destacou nervosamente ao reconhecer a letra do pai, embora mais brusca e irregular, talvez por causa da idade, talvez pelas circunstâncias.

Era um bilhete, não mais de quinze linhas, em que Domingo prestava contas do seu dia. Tinha gasto a manhã a pôr coisas em ordem, a papelada da casa, as escrituras, as rendas de Luzia, Mariana e Nélio.  Alberto, que a partir de agora era quem olhava pelos tios, encontraria tudo numa pasta, classificado e explicado ao pormenor. À tarde Domingo fora à cidade tratar daquela compra. Sabia que Alberto tinha a sua vida, os seus dias cheios, as suas noites, não estava habituado àqueles cuidados. Então, que fizesse as coisas com calma. Durante um ano não era preciso preocupar-se: os mantimentos da casa estavam garantidos, conforme a lista que acompanhava o bilhete. E estava tudo pago.

______


Quando o bilhete ficou pronto, Domingo tapou a caneta, cobriu de goma arábica a borda do envelope, pressionando sobre ele as duas mãos, num alívio. Fora um longo dia, repetiu, já ausente, deixando o olhar perder-se ainda uma vez no rosto de Glória.

Só então dobrou os óculos, tirou de uma gaveta a pistola que carregara meses antes, apagou a luz. E terminou o seu dia.

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