Entrevista
Helena
estava finalmente a abrir a garagem para tirar a bicicleta quando o telemóvel
tocou. Revirou os olhos. Tinha sessenta minutos por semana para dar aquele
passeio, obrigar-se a fazer um bocadinho de exercício, e mesmo essa pequenina
hora do seu domingo tinha que ser disputada a uma conspiração de
contrariedades. Já lhe fora tão difícil livrar-se da fieira de insignificâncias
domésticas que lhe tinham roubado a manhã: coisas fora do lugar, limpezas mal
acabadas, toda a sorte de desordens acumuladas pela empregada ao longo da
semana. E agora mais esta.
O
nome no visor não a deixou mais feliz. Não tinha nada contra o Abel Maria, pelo
contrário: nos últimos tempos, desde que ele reaparecera, Helena até gostava
que telefonasse de vez em quando. A chatice é que ele só se lembrava disso
quando ela estava mesmo a meio de alguma coisa. Invariavelmente isso a fazia
hesitar, como agora, com o telemóvel na mão, entre interromper o que tinha
começado ou desligar o Abel Maria. Invariavelmente concluía que, se não o
atendesse, ia ter que ligar ela própria mais tarde, o que acabaria por lhe
roubar tempo a outra ocupação qualquer. A verdade é que Helena estava sempre a
meio de alguma coisa. Resolveu atender.
Embora,
como sempre, logo a seguir estivesse arrependida. Nem sequer tinha acabado a
pergunta ritual, tudo bem contigo ou algo do género, e já a voz lamurienta do
Abel Maria fora directo ao assunto: não, não ia lá muito bem – e passara a
contar. Helena sentou-se no muro, resignada. A bicicleta ficava outra vez para
a semana.
Normalmente
não desgostava das histórias do Abel Maria, sempre tão complicadas e trágicas
que lhe deixavam no final um agradável alívio pelo rumo que dera à sua própria
vida. Vez por outra até deixava de ouvir, enquanto ele se expandia nos
detalhes, e ficava a pensar no que teria sido se não tivesse saltado a tempo
daquele namoro contranatura. Pensar que fora tão difícil. Tão miúda que ela
era, hipnotizada assim por aquela alma confusa, aquele ser a quem faltava tudo:
músculos, miolos, pés na terra, vontade. O facto é que a cabeleira exuberante,
os amigos do teatro, os charros, os três acordes dedilhados na viola a tinham
deixado sem réstia de lucidez. Julgara, ao conhecê-lo, ter encontrado o seu
antídoto. Se o amasse muito, pensara, se o imitasse em tudo, talvez ainda
pudesse ser salva. Em troca, segui-lo-ia até ao fim do mundo.
Felizmente,
disso não chegara a haver perigo: com todo aquele aparato, o Abel Maria nunca
iria mais longe, como se viu, do que o café da esquina.
Agora
isto tudo era evidente. Na altura passara o diabo, até se conformar com a ideia
de que não ia mesmo ser salva. E não ia. Sabia hoje que estava condenada a ser
assim: contida, reservada, avara de lágrimas e de riso, incompetente para
qualquer gesto fora dos previamente determinados. Por muito ioga e tai chi
chuan que fizesse, por muita erva com que tivesse maltratado os pulmões, não
tinha remédio senão ser aquela. A dos músculos tensos. A dos olhos em guarda
contra as maldades do mundo. Sempre lacónica, sempre discreta, amiga de pagar
impostos e de cumprir regulamentos. E, entretanto, pelo canto do olho, sempre a
invejar os que não precisavam de ser salvos. Os espontâneos. Os derramados. Os
que tinham assunto com desconhecidos. Os que chegavam atrasados com a felicidade
na cara e se vestiam para dar nas vistas. Durante um tempo ainda continuara
tentando: amigos freaks, terapias várias, novos namorados, não tão sem eira
como o Abel Maria mas inviáveis na mesma. Como nada resultasse, um dia deu de
ombros e foi em frente.
Quando,
muito depois, reencontrou o Abel Maria, levou um susto. Não é que ele tivesse
mudado: tendo em conta todos aqueles anos até que mudara bem pouco. Ganhara uns
quilos, perdera cabelo, mas no essencial continuava o mesmo. Andava mal de
dinheiro. Não tinha trabalho: apenas projectos, muitos, entre os quais a
conversa ia saltando; e queixas, montanhas delas, contra o mundo, contra a vida
de hoje em dia, contra a ex-mulher, que já o era quando Helena o conhecera, e
que não o deixava ver a filha. O Abel Maria, enfim. O susto de Helena, quando
ele de repente lhe ressurgiu, foi perceber o quanto ela própria era outra. Como
era possível, arregalava-se, ter andado perdida por um homem assim?
Agora
achava-lhe graça. Nesta nova fase, ele dera para a tratar como um oráculo.
Nunca lhe pedira dinheiro. Mas pedia opiniões e conselhos, que Helena, quando
dava por si, já lhe estava a debitar como se fosse a coisa mais natural do
mundo. Não fazia ideia onde ia buscar tanta psicologia de bolso. Da sua boca
saíam pérolas de sabedoria espiritual que a deixavam entre o assombro e o
rubor. Mas a verdade é que eram tiro e queda: ao fim de cada um daqueles longos
telefonemas, o Abel Maria despedia-se com com uma voz agradecida, húmida de
consolo e esperança. Helena mantinha as distâncias, queria olhar para aquilo
com a sua habitual ironia; mas quando, por fim, desligava o telefone, já não
sabia se tinha conseguido.
Desta
vez, no entanto, a história era diferente. Começara com o queixume habitual;
mas depois, surpresa, não era de si próprio que o Abel Maria queria falar.
Helena lembrava-se da Graça? Nos enredos complicados do Abel Maria, a Graça,
que era a outra filha da ex-mulher dele com um sujeito anterior, reaparecia com
frequência. Helena, enquanto ele falava, ia teorizando que a fixação na
rapariga talvez servisse para o Abel Maria se sentir pai de alguém, já que da
própria filha não o deixavam chegar perto. Já esta outra era mais velha, à
partida dona do seu nariz, e se gostava do Abel Maria, se até o aceitava como uma
espécie de parente, que ao contrário dos outros não a chateava e tomava sempre
o seu partido, a mãe não se ralava. Aliás, a mãe nunca se importara muito com
nada do que a Graça fizesse, indignava-se o Abel Maria. E agora a menina, que
não tinha emprego, largara os estudos, e que embora fosse tão talentosa não
sabia propriamente fazer nada, ainda arranjara maneira de engravidar.
Helena
olhava o relógio. Já tinha percebido onde ia parar a conversa, mas não
encontrou a tempo uma desculpa para dizer não. O Abel Maria sabia como
conseguir as coisas. Se nem sequer estava a pedir nada em concreto, nenhum
compromisso, nenhuma esperança. Era só uma conversa. Só uma opinião. Não ia
tomar a Helena mais do que alguns minutos. Se recebesse a rapariga lá na empresa.
Se pudesse avaliar o que ela era capaz de fazer. Se pudesse orientá-la só um
bocadinho.
E
assim, não bastasse o domingo estragado, lá estava ela, agora, com esse bebé
nas mãos.
Já
no dia seguinte a rapariga ligou. Helena mandou dizer que era má altura, as
segundas-feiras são sempre uma complicação. Nos dias seguintes alegou reuniões
intermináveis, almoços com clientes que se esparramavam pela tarde, viagens
imprevistas e sem data de regresso. Mas a moça não desistia: ia deixando as
suas mensagens regularmente, de manhã cedo, antes do almoço, a meio da tarde.
Nada a fazer. Lá pelo décimo telefonema, Helena apertou os maxilares e pediu à secretária
que lhe encontrasse um espaço na agenda. Mas, se tinha mesmo que ser, ao menos que
fosse ao meio dia e vinte, nem um minuto antes, para não cortar a manhã, e ao
mesmo tempo para poder dizer que tinha, à uma, um almoço indesmarcável.
Calculava que a rapariga, sendo, ainda que vagamente, da família do Abel Maria,
não ia chegar a horas; de modo que a entrevista não tinha maneira de se
prolongar.
Mas
ao meio dia e um quarto ligou a telefonista a avisar que estava uma senhora na
recepção. Helena mandou que a fossem sentar na sala pequena, que lhe oferecessem
um café e uma revista. Entretanto acabou de responder ao e-mail que tinha em
mão, enviou-o, começou um outro. Ficou a hesitar em cima de uma frase,
reescreveu-a uma, duas, três vezes; em seguida apagou tudo e começou de novo,
com calma, conferindo de vez em quando os segundos que se arrastavam no seu
pulso.
Por
fim lá se pôs a caminho, aproveitando para resolver mentalmente, no percurso, aquele
problema mínimo, que lhe ocorrera enquanto mandava os emails. Não ia
propriamente a pensar no assunto. Era como se o assunto se pensasse sozinho, no
fundo da sua cabeça, enquanto ela, cá à frente, ia como sempre dando instruções
a este e a aquele com quem cruzava no corredor. O problema em causa era uma
questão de etiqueta. A saber: que, sendo a rapariga uma candidata, embora na
realidade não o fosse, pois não passava pela ideia de Helena oferecer-lhe coisa
nenhuma – mas sendo, mesmo assim, ou pelo menos formalmente, uma candidata – e
sendo Helena a diretora geral, além de dona da empresa – então o que convinha,
para deixar as coisas bem claras, era estender-lhe a mão. Estender-lhe a mão não
no sentido figurado, como é óbvio, mas fisicamente: o braço quase esticado, as
distâncias perfeitamente estabelecidas, como fazem os americanos. Isso era o
que convinha. Não havia dúvidas.
Embora,
neste caso, houvesse. Pois se a miúda não tinha qualquer hipótese de ser
contratada, não sendo, portanto, candidata alguma – só uma relação pessoal, uma
espécie de afilhada, ou enteada, ou o que fosse, do ex-namorado retornado dos
mortos e que metera uma cunha – então, se era assim, que mal havia em oferecer-lhe
o rosto, como é normal fazerem as mulheres, para que as faces se tocassem de
leve, enquanto os lábios, a salvo de qualquer contacto, se entortariam numa espécie
de careta, considerada suficiente, entre as mulheres, para caracterizar um beijo?
Helena
bem gostaria de poder evitar esses seus diálogos em surdina, tão bizantinos, e
que só não a cansavam mais, pelo menos ali no escritório, porque o corredor era
curto e era preciso decidir rápido, de modo a negar a quem quer que a esperasse
qualquer possibilidade de a ver hesitar. Desta vez, por exemplo, já ao entrar
na sala tinha o braço em riste, nos lábios o seu sorriso de executiva, bem
desenhado e frio como um cartão de visitas.
A
Graça, que estava à janela, a ver a paisagem, ergueu para ela uns olhos muito
lentos, grandes e lustrosos como se fossem de outra espécie de mamífero. Depois
arrastou-se majestosamente para mais perto, como se a barriga, que mal se
notava ainda, já lhe desse todos os direitos, e, ignorando a mão esticada à sua
frente, pôs as suas por trás dos ombros de Helena, numa espécie de abraço, que
completou com dois beijos estalados nas bochechas.
Helena
sentiu como em todo o seu corpo – nos braços que se enrijeciam, no estômago
subitamente encolhido – aquele toque inesperado fazia soar uma bateria de
alarmes. Mas não trouxera nenhum plano de contingência. A rapariga espalhava um
perfume esquisito, com uma parte mais ou menos fresca de eucalipto misturada,
lá no fundo, a um cheiro a corpo. Tinha as mãos húmidas, e essa humidade ficara-lhe
a arrefecer nos ombros, no sítio onde a Graça a havia tocado, da mesma forma
que o vestígio de saliva nos dois lados do seu rosto. Helena deu meio passo
atrás, apoiou-se na mesa. Precisava limpar o rosto e os braços. Entretanto aquela mulher à sua frente, a
lambê-la com os olhos.
Ia
mandá-la sentar mas foi a Graça que falou primeiro. A voz também parecia vir
lambuzada de uma gosma qualquer, era tão vagarosa, tão doce, que se colava à
pele. Que Helena não mudara nada. Estava mais bonita, muito mais bonita. Helena
hesitava entre decidir se cedia ou não a acreditar naqueles piropos ou se continuava
simplesmente a examinar a Graça que, entretanto, e sem esperar pelo convite, se
sentara. Tinha os cabelos pintados de uma cor que devia ter sido avermelhada. Via-se
que já gostara deles, mas agora as raízes, levemente oleosas, denunciavam outras
prioridades. As unhas eram pintadas de preto. E aquela voz.
Era
um som que não parecia vir de dentro dela. As frases pairavam sobre os seus lábios
como num filme espanhol, sem nunca sincronizar totalmente com eles. Já os olhos
apertavam-se para fixar os de Helena muito lá dentro, o que era incómodo, mas felizmente
não apontavam os dois na mesma direcção. Helena tinha que encarar ora um, ora
outro, sempre com a sensação de não estar a encontrar o certo, enquanto a voz ia
envolvendo as palavras numa calda espessa.
Enquanto
ela falava, o retrato da Graça antiga, tal como Helena a conhecera, ia surgindo
do seu desbotamento: uns grandes olhos claros, muito assustados, a espreitar
por trás das calças do Abel Maria, onde se fora esconder um corpinho magricela
enfiado numas roupas que a engoliam. Helena, que nessa época ainda não
domesticara a sua própria timidez, também não sabia como chegar perto. Por isso
optara sempre por ignorá-la. Atirava-lhe de vez em quando um sorrisinho de tia,
cá de cima, mas fazendo o possível para não o acompanhar com os olhos.
E
agora, esta mulher. Tinha parado de falar. Levou dois dedos de uma mão aos
lábios e aproximou o queixo do pescoço, fazendo um pequeno esgar. Depois sentou-se e ficou para ali a embasbacar
um instante, como quem nunca antes tivesse visto uma sala de reuniões. Se
calhar não tinha mesmo, pensou Helena enquanto tentava articular uma pergunta,
alguma forma de começar a conversa.
A
Graça, entretanto, abriu placidamente a carteira e tirou um cigarro. Helena
escandalizada. Não podes fumar agora, balbuciou. A rapariga acendeu o cigarro e
respondeu que sabia, o médico tinha-lhe dito. Mas que Helena não se
preocupasse, a mãe dela era uma chaminé e ela sobrevivera. A Rita também
sobreviveria.
Ficou
um instante a olhar o cigarro entre os dedos, enquanto acariciava a barriga. Levou
novamente a mão aos lábios, franziu outra vez a cara. Estava nessa fase,
portanto. Mas, quando ergueu os olhos, eram outros.
A
Rita, pensou Helena: era assim que se chamava o serzinho lá dentro, com o qual a
Graça, sempre com uma das mãos a acariciar a barriga, parecia nunca perder o
contacto. Nem mesmo quando, como agora, e sem sair daquela espécie de torpor, se
agitava, virando-se para os lados à procura de um cinzeiro. Helena ia insistir:
é que não podes mesmo fumar aqui. Mas a Graça, rasgando ainda mais o sorriso, extraiu
da carteira um lenço de papel, que parecia já ter sido usado antes, abriu-o
sobre a mesa e sacudiu para ali as cinzas. Soprou a fumaça para o teto e confirmou:
chama-se Rita.
Helena,
antes mesmo de se dar conta, já tinha de relance olhado para a parte da divisória
de vidro que não era tapada pelo vinil com o logotipo da empresa e deixava ver
o corredor. Algumas pessoas começavam a sair para o almoço. Com sorte, nenhuma se
lembrara de espreitar para dentro da sala, onde, em companhia da diretora-geral,
havia uma mulher a fumar. Mas a simples possibilidade de que isso ainda pudesse
acontecer reavivou-lhe o sentido de urgência. Olhou o relógio. Se o seu plano
de ter a conversa arrumada antes da uma já não ia acontecer, pelo menos podia acelerar
um pouco aquilo.
O
Abel Maria disse-me que já trabalhaste nalguns sítios?
A
Graça espremeu lábios e sobrolho num meio sorriso de mofa, como se a mera
suposição levantada por Helena fosse o supremo absurdo. Depois, condescendente:
tinha feito umas coisinhas. Andara a entregar folhetos à saída do metro. Trabalhara
num café. Mas nunca a tinham querido por muito tempo. Provavelmente não tinha
jeito para aquilo. O meio sorriso era agora um sorriso inteiro, incluindo os
olhos, onde não se divisava qualquer pedido de desculpas.
Mas
para o que é que tens jeito, então? A pergunta fora pensada para ser sarcástica
– Helena, se se conhecia minimamente, já deveria estar bastante irritada por
esta altura da conversa. Mas não estava. A voz tinha-lhe saído quase num
sussurro, com uma doçura que não compreendia.
A
Graça baixou o olhar, pousando-o sobre a mão que tinha apoiada na barriga. O
polegar começara outra vez a desenhar círculos sobre o vestido. Quando voltou a
erguer os olhos tinham outra vez aquela luz lá dentro.
Luz?
Helena espantou-se. A palavra não se declarara de imediato. De início constatara
apenas a ligeira surpresa de deparar com aqueles olhos, que de repente se viu
fitando por mais tempo do que parecia aceitável. Baixou, então, os seus, mas só
o suficiente para se refazer daquela espécie de nudez. Voltou a erguê-los, com
as sobrancelhas insistiu por uma resposta.
Eu
faço uns desenhos, suspirou finalmente a Graça, com desdém. O Abel Maria disse-me
para os trazer. Queres ver? Como Helena não dissesse nada, prendeu o cigarro entre
os lábios, torceu o corpo e, com a mesma lentidão com que procurara o tabaco,
começou a tirar coisas da bolsa. Um elástico. Um apara-lápis. Uns óculos, com fita
cola numa das pernas. Por fim fez emergir um pequeno cilindro de cartão, de
onde extraiu um rolo com quatro ou cinco folhas A4. Pousou-as sobre a mesa, mais
próximas de si própria do que de Helena, começou a dispô-las lado a lado.
Helena
debruçou-se para ver melhor.
Porque
é que estava a fazer aquilo? Tinha uma empresa de consultoria, às vezes até precisava
de estagiários para funções administrativas, mas nunca houvera qualquer posição
em que um talento de desenhista fosse útil. Admitindo, claro, que havia talento.
Não era o caso: os desenhos, mesmo com boa vontade, não eram bons nem maus.
Coisas de adolescente, com algum jeito, talvez, mas sem gosto, sem ideias, sem
trabalho por cima.
Não
são grande coisa, pois não? Era a primeira vez que Helena ouvia a gargalhada da
Graça. Eu disse ao Abel Maria, mas ele teimou para que eu os trouxesse. Helena,
sem responder, continuou a percorrer ora um, ora outro. Havia uma cara de
mulher com cílios muito grandes, uma tentativa de praia com ondas, uma lebre. Quando,
por fim, levantou os olhos, os da Graça estavam à sua espera. Tinham a mesma
luz. Helena surpreendeu-se outra vez, mas já não com a palavra. Era mesmo isso,
conformou-se. Luz. Custava-lhe. Era estranho. Mas não havia outra.
Nunca
fizeste mesmo nada?, insistiu. Nem na escola, nem organizaste nada com os teus
amigos? A Graça voltou a abanar a cabeça e a escancarar o sorriso, como se a
sua incompetência a fizesse imensamente feliz. Levantou os ombros. Nunca teve
de ser. Mas agora tem. Por causa da Rita.
Helena
atónita. Era o tipo de confissão que normalmente a deixaria possessa, ainda
mais vinda de uma mulher naquele estado. Então passara a vida inteira sem se
preparar para isso? E, se não estava preparada, como era possível ter deixado
que acontecesse? A Helena que conhecia já estaria a ferver, a sentir subir pelo
corpo a vontade de agarrar aquela mulher pelo pescoço, de lhe sacudir os
ombros, de a arrancar à força àquela letargia. O que, sendo tudo gestos que não
combinavam com a personagem contida e sensata que era a única que se permitia
representar, seria prontamente
substituído por uma cara profissional, esculpida em gelo, e por aquele braço hirto
que não alcançara o seu objetivo à chegada mas que seria perfeito, agora, para polidamente
terminar a entrevista.
Mas
não. Alguma coisa não estava a bater certo. Via de novo a Graça levar os dedos
aos lábios, revirar os olhos, apertar o queixo contra o pescoço – estou na fase
do enjoo, acrescentou, sem necessidade – e não sentia irritação nenhuma. Nem
sequer por aquela conversa inútil estar a levar tanto tempo. Nem sequer por ter
o estômago a doer, e ter permitido que, contra todos os hábitos, uma reunião
com hora certa para acabar tivesse arrombado a sua hora de almoço.
E
então, sem que Helena o conseguisse explicar, aconteceu. Ouviu as palavras
saindo dos seus próprios lábios. Era uma frase em português correto, clara e
articulada, mas não fazia qualquer sentido. Helena estava a oferecer-lhe um
trabalho. Estava a combinar um salário inicial, não era muito mas era um
salário. Estava a explicar à Graça que assim a Rita podia vir em segurança. Estava
a pedir-lhe que entrasse só na próxima semana – e a justificar-se! Por não
saber ainda onde a Graça se iria sentar. Por nem sequer saber ao certo o que
havia para a Graça fazer – mas isso logo se veria.
Quando
acabou de ouvir tudo isso já não ouviu mais nada. Sabia que a Graça lhe estava
a agradecer, que lhe estava a pôr em cima aqueles olhos excessivos. Que lhe apertara
os braços e que em seguida a beijara, deixando-lhe na pele o mesmo rasto de perfume
e de cuspe. Mas tudo o que Helena ouvia era aquela pergunta que lhe chegava lá
de longe, como um eco, uma reminiscência do mundo real que continuava a existir
e a aguardava lá fora, para lá da divisória de vidro. A empresa era sua. Não
tinha sócios – ninguém, na verdade, a quem prestar contas. Mas e os outros
empregados? O diretor comercial. O financeiro. Ela própria. Como é que lhes
contava explicar a contratação daquela pessoa?
Quando
a Graça finalmente saiu, Helena ficou ali ainda um tempo, olhando para a janela,
exausta. Tinha estado ali bem uma hora, como se a entrevista fosse para o cargo
mais decisivo da empresa, e parecia-lhe mais. Doía-lhe o estômago, mas não
tinha certeza se era de fome. A sala ainda com daquele cheiro.
Despertou
com o toque do telemóvel: era o Abel Maria. Helena respirou fundo, desligou. Levou
uma das mãos à boca, reprimindo qualquer coisa que vinha lá de dentro. Estava
na fase do enjoo.
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