A quadrilha
Era um dia
qualquer de junho, já não sei bem. Sei que tinha treze anos, que o telefone
tocou e quem atendeu mandou chamar o meu pai.
Ele veio sorridente – do outro lado era
uma das suas sobrinhas – até que lhe
disseram o que era e ele ficou coçando a orelha. Meu pai, fiquei sabendo nesse
dia, não se expandia nos seus pesares. Comunicou a notícia a minha mãe, que a
comunicou a nós todos enquanto ele se retirava para o quarto. Coube em seguida
a minha mãe justificar para nós aquele silêncio, o pai é assim mesmo, gostava
muito da irmã mas quando essas coisas acontecem ele não diz nada, finge que não
foi nada, é a sua maneira de entristecer.
Creio que era
ainda de minha mãe a tarefa de localizar o meu tio a tempo de lhe dar a
notícia. O enterro seria essa tarde, às cinco, no Cemitério de São João
Batista. Mas o tio não estava em casa, no colégio onde dava aulas não sabiam
dele, e assim ficou aquela preocupação suspensa sobre a nossa mesa do almoço.
Eu, que só uma
vez tinha visto a tia Salomé, e mesmo assim numa visita arranjada às pressas,
meses antes, quem sabe para que não se fosse deste mundo sem sequer ser
apresentada aos sobrinhos, não fui convocado para o enterro. Para ser exato,
nem pensei mais nele. Não sei que dia era de junho, mas sei que era festa de
São João no colégio e eu ia dançar a quadrilha. Ensaiara para isso todo o
último mês, como nos outros anos. Mas, ao contrário dos outros anos, desta vez
já não era uma simples brincadeira, a gozar ou evitar conforme o que mandasse a
minha timidez. Aos treze anos, dançar a quadrilha era uma coisa que acontecia
entre meninos já com buço e meninas já com seios. E era um teste: ou se tinha
ou não se tinha conseguido um par. Ora,
eu, sabe-se lá como, tinha conseguido.
Quem era? A
minha memória é este sótão em que todas as velharias se misturam. Se foi Elizabete,
está tudo explicado: era das feias, das que ninguém queria, e por isso servia
perfeitamente para um tímido como eu. Ou talvez Elizabete tenha sido no outro
ano, quem sabe noutra festa em que o meu medo era igual. Que importa? Quem foi
o meu par não faz a menor diferença nesta história.
Depois do almoço,
quando todos saíram para os seus assuntos, funerários ou não, pude afinal me
dedicar ao meu rito preparatório. Dois anos antes, teria sido um ritual
igualmente cheio de ansiedade, mas daquela ansiedade alegre das crianças em dia
de festa. Além disso, não o cumpriria sozinho, como agora, mas vestiria a
fantasia que minha mãe ou minha irmã tivesse preparado para mim. Desta vez, a
ansiedade era toda hesitações e pavores, a medir eu mesmo, no espelho do banheiro,
a largura do bigode traçado a lápis de sobrancelha, o efeito do lenço atado ao
pescoço com a ajuda de uma caixa de fósforos.
Até que fiquei
pronto, e fui. Não esperei pelo meu irmão, não combinei com ninguém uma ida em
conjunto. Se era preciso ir, enfrentar o par, a festa, a apavorante companhia
dos outros, o melhor era ir depressa. Entrei sozinho no elevador, caminhei
sozinho as duas quadras até o ponto de ônibus, esperei sozinho que ele
passasse. Mas foi só quando já estava lá dentro, no ônibus quase deserto da
tarde de sábado, que comecei a suspeitar a figura que fazia. Equilibrando-me no
corredor em movimento, com minhas calças remendadas, meu chapéu de palha com a
aba meticulosamente esgarçada, o bigodinho pintado e as sobrancelhas muito
pretas, e ao mesmo tempo aquele ar tão sério de adolescente compenetrado dos
seus duros deveres, eu era um ímã para a curiosidade dos raros passageiros.
Embora me bastasse retribuir o olhar para que, de repente, todos recuperassem
um agudo interesse pela paisagem lá fora.
Se então
pensei em voltar atrás, já era tarde. A
casa cada vez mais longe, o colégio a aproximar-se, devagar e inevitável. O
ônibus, envolto na habitual nuvem de fumaça fedorenta, arrastava—se, entre
sinais vermelhos, em direção ao meu destino. Desceu a rua da Igreja, depois a
24 de Junho, parou alguns minutos em frente a uma vitrine exuberante de
empadinhas e frutas cristalizadas, atrás da qual por um instante me pareceu
ver, fumando lá dentro, junto ao balcão, uma silhueta nariguda e familiar.
Talvez fosse meu tio: aquela, se eu não estava enganado, era a padaria dos seus
cunhados, onde já o tinha visto outras vezes a passar o tempo e a conversar. Se
era, porém, ou se não era, não me ocupei muito do assunto. Olhava as ruas, as
lentas esquinas que ia deixando para trás, mas a única coisa que via era aquela
dúvida inchando. Será que tinha entendido direito? Será que era mesmo para ter
vindo assim?
Não era.
Quando entrei no colégio já havia gente chegando para a festa, mas ninguém paramentado
como eu. A dúvida, então, doía feio. Por muito que meus olhos buscassem,
ninguém: todo mundo viera normal, com a fantasia numa sacola. Olhava, voltava a
olhar em volta, a testa cada vez mais franzida e todos os meus temores
confirmados. Só eu. Só eu com a cara pintada. Só eu com o chapéu de palha, a
camisa xadrez. Os remendos. O lencinho. Só eu duas horas antes e já prontinho
para a quadrilha. Só eu o precoce. Só eu o retardado – com aquela fantasia de
escola primária. Só eu ali de palhaço, largado no pátio enorme, que de repente
girava como um imenso picadeiro.
Nessa época,
convém precisar, já não gostava de fazer o gênero excêntrico. Talvez ainda me
achasse especial: de alguma forma melhor do que os outros e de alguma forma, ao
mesmo tempo, pior; mas já não querendo ser nenhum personagem que se visse por
fora. Já não trancava a boca com força para nunca rir, como quando entrara no
colégio, nem andava mais pela cidade de cachecol, boné inglês e japona, feito
um pequeno lorde que saltasse da ilustração do livro diretamente para as ruas
do Brasil. Mas o cachimbo me entortara a boca: não sendo mais excêntrico por
gosto, continuava a sê-lo por não saber outra maneira. Só que agora sem fé, sem
graça, sem aquela tranquila imunidade de quem faz as coisas para provocar um
efeito. Agora não era imune a nada: ridículo até à medula, até à ridícula
medula que, estava na cara, todo mundo em volta era capaz de ver.
Pior do que o
ridículo, porém, pior ainda do que o pânico, cada vez maior, diante das longas
horas até começar a quadrilha, foi ver avançar para mim aquele par de olhos
condescendentes. Era João do Rio: um rapaz já do segundo grau, imenso, cheio de
pêlos, muito popular entre os outros do seu tamanho; mas ao mesmo tempo tão boa
gente, tão diferente dos outros, que não se importava de fazer amizade mesmo
connosco, os fedelhos. Até eu, que quase não tinha amigos nem mesmo entre os da
minha idade, sabia o seu nome e já conversara com ele umas tantas vezes. E
agora via-o aproximar-se, oblíquo, cheio de tato e curiosidade, como quem
aborda um animalzinho acuado.
Vinha me
salvar. Cumprimentou-me de leve, para esconder a piedosa intenção, mas num
minuto ela já reluzia cá fora, afiada e fatal. Não perdeu tempo com rodeios: o
seu primeiro comentário foi logo para a minha roupa. Que era legal já ter vindo
assim, com o chapéu de palha e tudo mais. Ainda faltavam umas horas, mas qual
era o mal? Era muito legal não ficar envergonhado, entrar de uma vez no
espírito da festa. Era legal. Tudo aquilo que me roía as vísceras era muito
legal – e quanto mais ele falava, mais eu me contorcia, calado. Já não o ouvia.
Só pensava em sumir, desintegrar-me, evaporar sem deixar vestígios. Cavar um
buraco na terra e me enterrar bem lá no fundo.
Cavar um
buraco na terra. A frase ficou na minha cabeça, ecoando, ecoando, enquanto o
coração, sem eu saber por quê, disparava. Cavar um buraco e me enterrar. Era
isso. Enquanto João do Rio não se calava, senti uma luzinha despontar bem lá no
fundo. O enterro da tia Salomé. O tio que não fora avisado. Não era ele que eu
tinha avistado, do ônibus, a caminho do colégio? Se até ali ouvira acabrunhado,
mal conseguindo balbuciar uma resposta, a súbita inspiração me devolveu as
palavras. João do Rio ficou me olhando suspenso quando sem mais nem menos o
interrompi, já me despedindo: “Pois é. Mas é que agora eu vou ter que sair”.
E tinha que
sair urgente. O caso, não sendo de vida ou morte, era de morte apenas – e
chegava. Tão grave, tão premente, que nem pensar em ir outra vez para o ponto
de ónibus, mofar ali quanto tempo à espera. Era um caso especial, sim senhor:
qualquer um compreenderia isso. De modo que, já sem timidez nenhuma, atravessei
o pátio, aproximei-me do professor de ginástica, que estava rindo com uma moça
da secretaria, e à queima-roupa requisitei-lhe a Kombi.
O professor
Abílio ficou me olhando de alto a baixo, parado, sem dizer nada, sem entender
aquela criatura fantasiada e menos ainda o que ela estava lhe dizendo.
Pacientemente expliquei. Tinha perdido a minha tia; fazia tempo que ela
agonizava de um câncer, uma coisa horrível, segundo os meus pais. Mas
finalmente chegara ao fim, e o enterro estava marcado para agora, às cinco. Só
que o meu tio, que era irmão dela, não tinha sido avisado de nada. Meus pais
não sabiam dele, procuraram-no por toda a parte e nada, mas eu, no caminho para
a festa, descobrira onde ele estava.
Tinha que avisá-lo. Por isso precisava, e com urgência, da Kombi do
colégio.
O professor e
a moça da secretaria compreenderam tudo. Guardaram o riso para mais tarde,
puseram uma cara compadecida, disseram que coisa chata, a sua tia, pois é, mas
agora pelo menos ela descansou. Continuavam a me percorrer com os olhos, ainda
um pouco incrédulos, mas eu já não ligava. Agora tinha uma missão – e ia executá-la,
custasse o que custasse. Por isso, quando o professor Abílio, tendo acabado de
compreender o meu caso, declarou que sentia muito, mas não podia sair comigo na
Kombi, tudo o que fiz foi agradecer com um olhar compungido, como convém a um
parente do morto, e altivamente lhe virar as costas.
Indiferente,
agora, aos olhares de quem vinha entrando, cruzei o portão da escola com o
mesmo ar pesaroso, e um passo pausado, solene, como se já fosse carregando o
caixão. Mas não fui para o ponto de ônibus. A recusa do professor Abílio me
espicaçara o brio. Se não me ajudavam a cumprir o meu dever, ia cumpri-lo
sozinho, nem que para isso tivesse que atravessar a cidade a pé.
E assim lá fui
eu, de esquina em esquina, o sombrio mensageiro da morte com a sua roupa de
caipira. O espanto dos transeuntes, o mesmo do ônibus e do pátio da escola,
agora me escorria pelo corpo como a aragem da tarde; já não ardia. Que
importava o que pensassem, o que pudessem dizer. Graças àquela providencial
incumbência, que apenas eu, eu e mais ninguém podia desempenhar, era de novo
imprescindível ao mundo. Durante quarenta preciosos minutos, carreguei essa
certeza como o meu escudo. Nem o escárnio, nem o desprezo, nem mesmo a
indiferença já me podia atingir.
Até que por
fim cheguei à padaria Flor do Jordão, onde o meu tio, agora eu tinha certeza,
era aquele homem sentado num banco alto junto ao caixa, de costas para quem
entrava. Estava no meio de uma acesa
discussão sobre futebol, rodeado de dois ou três amigos e vários copos de chope
vazios. Toquei-lhe no braço, a princípio tão de leve que ele nem deu pela minha
presença. Quando afinal voltou os olhos para mim, o tio, que só a longos
espaços me via - da última vez, provavelmente, quando eu ainda era bem mais
menino -, creio que não me reconheceu. Mais uma vez, viu apenas o chapéu de
palha, o bigode e o cavanhaque, o lenço.
Não lhe dei
tempo para recordar quem eu era. Pus-lhe no colo a morte da irmã e o horário do
enterro. O tio vidrou em mim uns olhos como se eu tivesse a transparência de
uma aparição. Os amigos em volta, cuja alegria eu viera interromper, também não
tinham palavras. A minha chegada súbita e incongruente tinha-os paralisado para
sempre.
Não esperei
que se recompusessem. Deixei-os todos ali, congelados, incluindo o meu tio, que
não tenho a menor ideia do que fez a seguir. Se foi para o enterro, se deu de
ombros e pediu mais um chope, não me inteirei. Minha tarefa estava cumprida.
Quando cruzei
de novo o portão do colégio, o pátio estava cheio: entre as barracas cobertas
de sapê, em volta do pau de sebo, sob os milhares de bandeirinhas coloridas, os
meus colegas formavam grupos animados, falavam alto, gargalhavam. Uns, mais
afoitos, fumavam. O alto-falante no mastro berrava músicas de São João, as
mesmas do ano anterior. Lá no fundo, junto ao muro, uma grande fogueira cuspia
um rolo escuro. Uns marmanjos do segundo ano, trepados em banquinhos, seguravam
pelos cantos um grande balão de papel, com uma fileira de lanternas que eles
iam acendendo e pendurando. Por toda a parte, meninas de maria-chiquinha, com
as faces muito vermelhas, conversavam com rapazes de chapéu de palha,
cavanhaques pintados, camisas xadrez.
Faltavam dez
para as cinco da tarde – quase a hora de começar a quadrilha. Convinha,
portanto, ir procurar o meu par.
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