O fogo
Reunira-os ali porque aquele era o acontecimento mais
importante da sua vida. O que, numa vida tão cheia de acontecimentos, como a
sua, não era pouco.

Tinha havido a viagem à cidade, para ver os bailarinos que
patinavam no gelo. O melhor não fora tanto o espectáculo, que mal pudera
acompanhar por causa do sono, mas o comboio, a dieta de gelados e pipocas
doces, e principalmente a volta para casa, às horas proibidas de depois da meia
noite, quando, constatara-o então, afinal as estradas continuavam abertas,
havia carros, montras acesas, as coisas não cessavam de existir.
Tudo isso fora importante e já dava para compor uma razoável
biografia. Mas o que iam celebrar desta vez era mais. Por isso, e uma vez que
já estavam todos, pegou no pacote que tinha no colo, com gestos grandes e
demorados desembrulhou-o, desvencilhando da folha de jornal o pequeno caule
sujo de terra. Ergueu-o com as duas mãos à altura da testa, sempre seguindo-o
com os olhos, como costumava ver fazer o padre, mas sem aquele olhar gelatinoso
da missa. Olhava o pau, isso sim, com amoroso rancor. Era o seu inimigo;
perseguira-o, capturara-o, hoje era o dia da desforra. E para quem dos
presentes não soubesse a história, passava agora solenemente a recordá-la.
Um cano de água é um cano de água não mais do que um cano de
água. Mas há um momento em que todas as coisas, mesmo as mais toscas, as mais
ferrugentas, como aquele cano a margear a estrada, se transfiguram. Era como
certos objectos atirados ao lixo. Um sapato é um sapato, nada tem a ver com
cascas de ovos ou pó de café já usado, mas de repente o mundo saía dos eixos e
o sapato misturava-se a todos esses restos; então, e embora ainda não houvesse
palavras para dizê-lo, era como se ambos se libertassem. O sapato, enfim em
alegre promiscuidade com a porcaria deste mundo. O menino, com a tampa do caixote
na mão, fascinado a contemplar lá para dentro.
Assim com o cano de água. Não era, este, um cano como os
outros. Não se escondia dentro do chão ou das paredes das casas, nem surgia
repentino por cima de um lavatório, para entregar pela torneira cromada uma
água asséptica e anónima. Este exibia-se sem recato à luz do dia, manchado de
musgo, e ia serpenteando estrada acima entre a poeira, as ervas, os cacos de
tijolos e telhas. O sopé da serra, onde o menino o descobriu, era o seu ponto
de chegada, de onde se ramificava e sumia para debaixo de uns muros, indo levar
água aos casebres dos dois lados da estrada. Mas até chegar aí tinha vindo lá
de cima quem sabe por que caminhos, atravessado que perigos e acidentes
geográficos, e sempre à vista de todos, com aquele despudor. O menino mostrou-o
aos seus amigos e já então não era um cano. Era um sinal. Uma evidência. Lá de
onde vinha era de onde vinha tudo – onde brotavam e se escondiam as coisas
antes de serem como agora são.
Seguiram-no. Foram subindo os caminhos da serra, apesar do
sol e do cansaço, sempre guiados pelo cano. Em cada encruzilhada, sentiam o
velho gozo humano de não ter que decidir; o cano saberia onde os levava. Às
vezes punha-os à prova: fugia de repente para dentro de um barranco,
deixando-os desolados e órfãos. Mas bastava que algum deles, mais empreendedor,
avançasse alguns metros na estrada, ou subisse para uma rocha das redondezas,
para voltar a avistá-lo lá ao longe, acenando-lhes: do que é que ainda estão à
espera?
Já estavam um pouco exaustos quando o cano abandonou a
estrada e se meteu para dentro dos pastos. Uma mistura de exaltação e temor
percorreu o corpo do menino, confirmando-lhe que não se enganara. Saltaram a
cerca. Lá embaixo, a vila de ruas obedientes, com a fábrica que apitava sempre
às mesmas horas, a velha pasmaceira a modorrar nos bancos da praça, tinha
ficado pequenininha. Aqui, ao contrário, já não havia caminhos. O pasto
esparramava-se entre tufos de capim, montinhos de bosta aureolados de moscas,
grandes pedras onde eles às vezes subiam, para contemplar grandiosos a paisagem
da serra, até que o cano, impaciente, os convocava a prosseguir. À distância,
os bois paravam de mastigar e fitavam-nos, com os seus meigos olhos
ameaçadores.
Mas o menino e os seus amigos não eram intrusos. Estavam ali
a convite. Quando a encosta se tornou mais íngreme e entraram no bananal, é
verdade que tiveram que disfarçar uns dos outros o medo que os mantinha calados
e à espreita. O capim lanhava as canelas, podia esconder espinhos, cobras, quem
sabe que outra raça de perigos. Eles, de pernas nuas, seguiam o cano.
Seguiam-no, pelo medo adentro, até que de repente a manhã deu lugar a outra
coisa. Em vez do sol coalhado entre as bananeiras, uma aragem fria que só podia
vir do esconderijo da noite. Em vez do cheiro de resina e capim, largas folhas
gosmentas, onde luziam nas suas teias pequenos monstros peludos. Tinham entrado
na floresta.
Ainda que, lá embaixo, não fosse esse o seu nome. Vista da
vila, durante o dia, era apenas a pele mais verde da serra, o lugar onde não se
irá nunca, o lá longe. Em certas noites, quando o silêncio da casa apertava
tanto que o menino não conseguia dormir, e na escuridão em volta os debates dos
cães eram como estar sem mãe e sem camisa, ao relento, era de lá, desse lugar
sem nome, que desceriam os ladrões e os lobos. Já nas conversas dos adultos não
havia nada disso; se alguma vez o mencionassem, casualmente, mastigando o
almoço, diriam simplesmente “o mato”.
Mas eles tinham entrado na floresta. E se naquele momento fossem
parar para escrever esta história, era na Floresta, assim, com maiúscula, que
teriam entrado. Iam alerta, reverentes, e o cano ainda era o seu guia; mas já
não era o único. De dentro das folhagens, talvez de dentro da barriga da terra,
chamava-os, agora, aquela música fresca. Misteriosa e árdua, como compete, a
promessa estava prestes a cumprir-se.
Havia só mais aquela prova a vencer: a parede de pedra
escura, com uma fenda estreitíssima no meio por onde o cano se esgueirou e
sumiu. Escalaram-na, vertical, escorregadia, e lá de cima ficaram a olhar, mal
respirando, para o que tinham merecido. A voz da água que lhes mostrara o
caminho tornara-se tudo aquilo: um círculo de céu entre copas e pássaros, o sol
que se divertia a desenhar sobre as pedras, e, no centro de tudo, cantando só
para eles, a pequena, luminosa cascata.
Voltaram para a vila à hora do almoço, no dia seguinte para
a escola e para a vida de todos os dias. Mas desde então não foi mais a mesma
coisa. Uma segunda, uma quarta, uma quinta-feira já não valiam por si mesmos –
apenas como medida da distância que os separava do domingo. Porque no domingo,
outra vez, seguiriam o cano até à fonte; e a fonte era a razão de tudo. Durante
a semana, mesmo quando se viam, nunca falavam daquilo; aos outros, então, menos
ainda. Sabiam que aquele não era um segredo para gabar no recreio, para fazer
inveja à malta ou ir revelando em pedacinhos, em troca de admiração ou de algum
privilégio. Aquele, finalmente, era um segredo a sério.
Nas aulas, nas histórias
dos amigos, mesmo nas conversas dos pais, que sabiam tudo, não havia sinal de
que alguém mais tivesse ouvido falar da Floresta. Tirando, naturalmente, quem
lá pusera o cano - mas quem teria sido?
O mais certo era ele estar lá desde sempre – pelo menos desde que a
serra era serra, com os seus caminhos e as suas casas, onde a água correr era
uma coisa sem histórias. Eles, no entanto, sabiam. E, como sabiam, tinham agora
essa criança ao colo. Domingo após domingo, como quem não vai à missa, iam ter
que voltar ali sempre, para montar guarda ao seu segredo.
E assim voltaram muitas vezes. Até que, como não podia
deixar de ser, uma delas foi a última.
Até esse dia, repare-se, a Floresta cumprira todas as suas
promessas. Começava quase sempre por ser um lugar meio mágico, como nos livros
das crianças pequenas – tão belo, tão
doce, que logo enjoava. Então, para
desenjoar, faziam com que já não fosse a Floresta, abrigo de sacis e duendes e
bichos de cores simpáticas; agora seria a Selva – antro de feras, canibais,
bandidos a maquinar emboscadas. Foi num domingo desses que a traição aconteceu.
O primeiro que viu a liana pendurou-se nela a medo, como se
mais essa descoberta fosse sorte demais para ser verdade. O segundo, que era o
menor deles todos, agarrou-a com vontade, entregou-lhe todo o peso do corpo e
pôs-se a voar para lá e para cá, como nem nos filmes. Os outros, convencidos,
já faziam fila. O terceiro foi o menino – mas o seu voo foi curto. Mal
arrancou, a liana partiu-se, e lá estava ele sentado no chão, entre as
gargalhadas de todos, e a rir também, que remédio. Quando se foi levantar não
conseguiu. Fez força com as pernas e nada. Ajudou-as empurrando a terra com as
mãos, mas por alguma razão o corpo não lhe obedecia. Era como se estivesse pregado
no chão. O irmão mais velho abriu caminho, agarrou-lhe a mão estendida, puxou
com força.
Quando afinal se levantou já não riram. Tinha estado
realmente pregado no chão. Caíra sobre um caule de arbusto decepado, escondido
entre as folhas secas junto ao riacho, que lhe furara e prendera a perna pouco
acima do joelho. Sangrava muito. Se na altura não sentira nada, apenas o susto
engraçado da queda, agora a perna começava a queimar. E eles ali. A vila, lá
embaixo, estava longe, a estrada estava longe, mesmo o casebre mais próximo
estava muito longe. Subitamente já não estavam na Selva nem na Floresta.
Estavam no meio do mato.
Mas lá se organizaram. O mais pequeno saiu na frente, a
correr como nunca na vida, para avisar os adultos. Os outros ampararam o menino
como puderam, içaram-no pedra acima, pedra abaixo, levaram-no pelas trilhas até
a primeira casa que avistaram, junto ao bananal. O posseiro deu-lhe água com
açúcar, estendeu-o no seu catre, atou-lhe a ferida com um pano não muito limpo.
O menino, valente. Não demorou muito até chegar o automóvel do pai.
A convalescença, como sempre, teve os seus lados bons e
maus. O médico, que a princípio se assustara com a fundura do estrago, respirou
ao ver que o nervo não fora tocado. Davam-se uns pontos, a perna ficaria inútil
por uns tempos, mas depois tudo voltava ao normal. Nem era preciso ser
internado. O menino mordeu os lábios: lá se ia a oportunidade de igualar o
irmão mais velho, hospitalizado três dias, no ano anterior, por causa das amígdalas.
O lado bom era ter-se tornado o centro da casa, com a família a fazer-lhe as
vontades, os amigos e primos a querer ouvir, quantas vezes ele contasse, os
detalhes da história.
Até que, aos poucos, o interesse foi secando, assim como a
ferida do menino. Não passou muito tempo até voltar a andar, a princípio
coxeando, que aquilo ainda doía, depois como se nada tivesse acontecido. Mas
tinha. E se na perna a cicatriz já nem incomodava, havia uma outra que não
queria sarar.
A Floresta. Para trazê-lo para baixo, o pai tinha chegado lá
perto, de carro, por uns caminhos que nem o menino conhecia. Depois, ao contar tantas vezes a história,
aos médicos, aos tios, à empregada, tinha violado, ele próprio, o segredo. A
Floresta, assim, com maiúsculas, já não existia. Apenas aquele trecho da serra,
por cima da fazenda de não sei quem, onde nascia o rio não sei quê, onde o
menino se tinha ferido, veja só, ao fazer de Tarzan.
Agora que ele estava bom, é claro que podiam voltar sempre
que quisessem. Mas já não seria o mesmo. O menino, pelo menos, já não tinha
vontade. Mesmo assim, quando lhe pareceu que as pernas já aguentariam, chamou
os outros e combinou a expedição. Só mais uma. Não iam, desta vez, saltar em
lianas, brincar aos bandidos ou aos tesouros, nem sequer tomar banho no rio.
Era só uma vez e não era para nada disso. Simplesmente, o que tinha que ser
feito, tinha que ser feito.
Extrair o caule da terra foi mais difícil do que haviam
pensado. Não era um pau espetado no chão; era uma planta com raízes, sem nenhum
desejo de abandonar a terra em que nascera. Como vinham sem ferramentas,
buscaram pedras, outros paus, quando nada mais resultou cavaram com as unhas
até sangrarem. Estiveram nisso quase toda a manhã. Por fim, o inimigo
rendeu-se. Desceram a serra, então, em triunfo. O menino a liderar o cortejo,
erguendo com as duas mãos o seu troféu, exibindo-o aos passantes que nada
entendiam. Quando chegaram ao sopé da serra, onde o cano se bifurcava,
mostraram-lhe também o inimigo capturado, e com uma vénia despediram-se da floresta,
para sempre.
E assim, agora estavam todos ali, para terminar, com a
devida pompa, a história. O menino olhou uma última vez para aquele pedaço do
seu paraíso que o traíra, com mais um gesto comprido colocou-o sobre a lenha
que já ardia. Agora era só esperar que o fogo fizesse a sua parte.
Mas o fogo, por alguma razão, negava-se. Esperaram e
esperaram, a olhar para as chamas, até que toda a lenha foi consumida. Quando o
menino remexeu as cinzas, o pequeno tronco continuava lá, quase intacto. Ainda quis
trazer mais lenha, montar outra vez o altar do castigo, mas os outros já não
alinhavam. Pouco a pouco foram-se levantando, combinando outras brincadeiras,
longe dali. Por fim ficou só o menino,
com os seus fósforos, uns poucos gravetos, o inimigo. Que estava verde. E não
ia queimar.
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