O fogo


Reunira-os ali porque aquele era o acontecimento mais importante da sua vida. O que, numa vida tão cheia de acontecimentos, como a sua, não era pouco.

Tinha havido o dia do temporal, em que o pai tirara do ostracismo o velho bote de pesca para navegarem pelas ruas. Tinha havido aquele inverno em que estrearam a casa. Quando pela primeira vez foram acender a lareira, o que os antigos donos não tinham feito, pelos vistos, durante muitos anos, uma nuvem de morcegos surgiu da chaminé, cobriu o céu por uns minutos e depois veio coalhar o quintal de dezenas de cadáveres, já previamente amortalhados. Tinha havido, nos quinze anos da prima, com a sua chuva de pérolas falsas a gotejar do vestido de princesa, aquele chamado furtivo para uma sala à parte, onde se servira, arregalado e sem limites, de todos os doces que não iriam para as mesas.

Tinha havido a viagem à cidade, para ver os bailarinos que patinavam no gelo. O melhor não fora tanto o espectáculo, que mal pudera acompanhar por causa do sono, mas o comboio, a dieta de gelados e pipocas doces, e principalmente a volta para casa, às horas proibidas de depois da meia noite, quando, constatara-o então, afinal as estradas continuavam abertas, havia carros, montras acesas, as coisas não cessavam de existir.

Tudo isso fora importante e já dava para compor uma razoável biografia. Mas o que iam celebrar desta vez era mais. Por isso, e uma vez que já estavam todos, pegou no pacote que tinha no colo, com gestos grandes e demorados desembrulhou-o, desvencilhando da folha de jornal o pequeno caule sujo de terra. Ergueu-o com as duas mãos à altura da testa, sempre seguindo-o com os olhos, como costumava ver fazer o padre, mas sem aquele olhar gelatinoso da missa. Olhava o pau, isso sim, com amoroso rancor. Era o seu inimigo; perseguira-o, capturara-o, hoje era o dia da desforra. E para quem dos presentes não soubesse a história, passava agora solenemente a recordá-la.

Um cano de água é um cano de água não mais do que um cano de água. Mas há um momento em que todas as coisas, mesmo as mais toscas, as mais ferrugentas, como aquele cano a margear a estrada, se transfiguram. Era como certos objectos atirados ao lixo. Um sapato é um sapato, nada tem a ver com cascas de ovos ou pó de café já usado, mas de repente o mundo saía dos eixos e o sapato misturava-se a todos esses restos; então, e embora ainda não houvesse palavras para dizê-lo, era como se ambos se libertassem. O sapato, enfim em alegre promiscuidade com a porcaria deste mundo. O menino, com a tampa do caixote na mão, fascinado a contemplar lá para dentro.

Assim com o cano de água. Não era, este, um cano como os outros. Não se escondia dentro do chão ou das paredes das casas, nem surgia repentino por cima de um lavatório, para entregar pela torneira cromada uma água asséptica e anónima. Este exibia-se sem recato à luz do dia, manchado de musgo, e ia serpenteando estrada acima entre a poeira, as ervas, os cacos de tijolos e telhas. O sopé da serra, onde o menino o descobriu, era o seu ponto de chegada, de onde se ramificava e sumia para debaixo de uns muros, indo levar água aos casebres dos dois lados da estrada. Mas até chegar aí tinha vindo lá de cima quem sabe por que caminhos, atravessado que perigos e acidentes geográficos, e sempre à vista de todos, com aquele despudor. O menino mostrou-o aos seus amigos e já então não era um cano. Era um sinal. Uma evidência. Lá de onde vinha era de onde vinha tudo – onde brotavam e se escondiam as coisas antes de serem como agora são.

Seguiram-no. Foram subindo os caminhos da serra, apesar do sol e do cansaço, sempre guiados pelo cano. Em cada encruzilhada, sentiam o velho gozo humano de não ter que decidir; o cano saberia onde os levava. Às vezes punha-os à prova: fugia de repente para dentro de um barranco, deixando-os desolados e órfãos. Mas bastava que algum deles, mais empreendedor, avançasse alguns metros na estrada, ou subisse para uma rocha das redondezas, para voltar a avistá-lo lá ao longe, acenando-lhes: do que é que ainda estão à espera?

Já estavam um pouco exaustos quando o cano abandonou a estrada e se meteu para dentro dos pastos. Uma mistura de exaltação e temor percorreu o corpo do menino, confirmando-lhe que não se enganara. Saltaram a cerca. Lá embaixo, a vila de ruas obedientes, com a fábrica que apitava sempre às mesmas horas, a velha pasmaceira a modorrar nos bancos da praça, tinha ficado pequenininha. Aqui, ao contrário, já não havia caminhos. O pasto esparramava-se entre tufos de capim, montinhos de bosta aureolados de moscas, grandes pedras onde eles às vezes subiam, para contemplar grandiosos a paisagem da serra, até que o cano, impaciente, os convocava a prosseguir. À distância, os bois paravam de mastigar e fitavam-nos, com os seus meigos olhos ameaçadores.

Mas o menino e os seus amigos não eram intrusos. Estavam ali a convite. Quando a encosta se tornou mais íngreme e entraram no bananal, é verdade que tiveram que disfarçar uns dos outros o medo que os mantinha calados e à espreita. O capim lanhava as canelas, podia esconder espinhos, cobras, quem sabe que outra raça de perigos. Eles, de pernas nuas, seguiam o cano. Seguiam-no, pelo medo adentro, até que de repente a manhã deu lugar a outra coisa. Em vez do sol coalhado entre as bananeiras, uma aragem fria que só podia vir do esconderijo da noite. Em vez do cheiro de resina e capim, largas folhas gosmentas, onde luziam nas suas teias pequenos monstros peludos. Tinham entrado na floresta.

Ainda que, lá embaixo, não fosse esse o seu nome. Vista da vila, durante o dia, era apenas a pele mais verde da serra, o lugar onde não se irá nunca, o lá longe. Em certas noites, quando o silêncio da casa apertava tanto que o menino não conseguia dormir, e na escuridão em volta os debates dos cães eram como estar sem mãe e sem camisa, ao relento, era de lá, desse lugar sem nome, que desceriam os ladrões e os lobos. Já nas conversas dos adultos não havia nada disso; se alguma vez o mencionassem, casualmente, mastigando o almoço, diriam simplesmente “o mato”.

Mas eles tinham entrado na floresta. E se naquele momento fossem parar para escrever esta história, era na Floresta, assim, com maiúscula, que teriam entrado. Iam alerta, reverentes, e o cano ainda era o seu guia; mas já não era o único. De dentro das folhagens, talvez de dentro da barriga da terra, chamava-os, agora, aquela música fresca. Misteriosa e árdua, como compete, a promessa estava prestes a cumprir-se.

Havia só mais aquela prova a vencer: a parede de pedra escura, com uma fenda estreitíssima no meio por onde o cano se esgueirou e sumiu. Escalaram-na, vertical, escorregadia, e lá de cima ficaram a olhar, mal respirando, para o que tinham merecido. A voz da água que lhes mostrara o caminho tornara-se tudo aquilo: um círculo de céu entre copas e pássaros, o sol que se divertia a desenhar sobre as pedras, e, no centro de tudo, cantando só para eles, a pequena, luminosa cascata.

Voltaram para a vila à hora do almoço, no dia seguinte para a escola e para a vida de todos os dias. Mas desde então não foi mais a mesma coisa. Uma segunda, uma quarta, uma quinta-feira já não valiam por si mesmos – apenas como medida da distância que os separava do domingo. Porque no domingo, outra vez, seguiriam o cano até à fonte; e a fonte era a razão de tudo. Durante a semana, mesmo quando se viam, nunca falavam daquilo; aos outros, então, menos ainda. Sabiam que aquele não era um segredo para gabar no recreio, para fazer inveja à malta ou ir revelando em pedacinhos, em troca de admiração ou de algum privilégio. Aquele, finalmente, era um segredo a sério.

Nas aulas, nas histórias dos amigos, mesmo nas conversas dos pais, que sabiam tudo, não havia sinal de que alguém mais tivesse ouvido falar da Floresta. Tirando, naturalmente, quem lá pusera o cano - mas quem teria sido?  O mais certo era ele estar lá desde sempre – pelo menos desde que a serra era serra, com os seus caminhos e as suas casas, onde a água correr era uma coisa sem histórias. Eles, no entanto, sabiam. E, como sabiam, tinham agora essa criança ao colo. Domingo após domingo, como quem não vai à missa, iam ter que voltar ali sempre, para montar guarda ao seu segredo.

E assim voltaram muitas vezes. Até que, como não podia deixar de ser, uma delas foi a última.

Até esse dia, repare-se, a Floresta cumprira todas as suas promessas. Começava quase sempre por ser um lugar meio mágico, como nos livros das crianças pequenas –  tão belo, tão doce, que logo enjoava.  Então, para desenjoar, faziam com que já não fosse a Floresta, abrigo de sacis e duendes e bichos de cores simpáticas; agora seria a Selva – antro de feras, canibais, bandidos a maquinar emboscadas. Foi num domingo desses que a traição aconteceu.

O primeiro que viu a liana pendurou-se nela a medo, como se mais essa descoberta fosse sorte demais para ser verdade. O segundo, que era o menor deles todos, agarrou-a com vontade, entregou-lhe todo o peso do corpo e pôs-se a voar para lá e para cá, como nem nos filmes. Os outros, convencidos, já faziam fila. O terceiro foi o menino – mas o seu voo foi curto. Mal arrancou, a liana partiu-se, e lá estava ele sentado no chão, entre as gargalhadas de todos, e a rir também, que remédio. Quando se foi levantar não conseguiu. Fez força com as pernas e nada. Ajudou-as empurrando a terra com as mãos, mas por alguma razão o corpo não lhe obedecia. Era como se estivesse pregado no chão. O irmão mais velho abriu caminho, agarrou-lhe a mão estendida, puxou com força.

Quando afinal se levantou já não riram. Tinha estado realmente pregado no chão. Caíra sobre um caule de arbusto decepado, escondido entre as folhas secas junto ao riacho, que lhe furara e prendera a perna pouco acima do joelho. Sangrava muito. Se na altura não sentira nada, apenas o susto engraçado da queda, agora a perna começava a queimar. E eles ali. A vila, lá embaixo, estava longe, a estrada estava longe, mesmo o casebre mais próximo estava muito longe. Subitamente já não estavam na Selva nem na Floresta. Estavam no meio do mato.

Mas lá se organizaram. O mais pequeno saiu na frente, a correr como nunca na vida, para avisar os adultos. Os outros ampararam o menino como puderam, içaram-no pedra acima, pedra abaixo, levaram-no pelas trilhas até a primeira casa que avistaram, junto ao bananal. O posseiro deu-lhe água com açúcar, estendeu-o no seu catre, atou-lhe a ferida com um pano não muito limpo. O menino, valente. Não demorou muito até chegar o automóvel do pai.

A convalescença, como sempre, teve os seus lados bons e maus. O médico, que a princípio se assustara com a fundura do estrago, respirou ao ver que o nervo não fora tocado. Davam-se uns pontos, a perna ficaria inútil por uns tempos, mas depois tudo voltava ao normal. Nem era preciso ser internado. O menino mordeu os lábios: lá se ia a oportunidade de igualar o irmão mais velho, hospitalizado três dias, no ano anterior, por causa das amígdalas. O lado bom era ter-se tornado o centro da casa, com a família a fazer-lhe as vontades, os amigos e primos a querer ouvir, quantas vezes ele contasse, os detalhes da história.

Até que, aos poucos, o interesse foi secando, assim como a ferida do menino. Não passou muito tempo até voltar a andar, a princípio coxeando, que aquilo ainda doía, depois como se nada tivesse acontecido. Mas tinha. E se na perna a cicatriz já nem incomodava, havia uma outra que não queria sarar.

A Floresta. Para trazê-lo para baixo, o pai tinha chegado lá perto, de carro, por uns caminhos que nem o menino conhecia.  Depois, ao contar tantas vezes a história, aos médicos, aos tios, à empregada, tinha violado, ele próprio, o segredo. A Floresta, assim, com maiúsculas, já não existia. Apenas aquele trecho da serra, por cima da fazenda de não sei quem, onde nascia o rio não sei quê, onde o menino se tinha ferido, veja só, ao fazer de Tarzan.

Agora que ele estava bom, é claro que podiam voltar sempre que quisessem. Mas já não seria o mesmo. O menino, pelo menos, já não tinha vontade. Mesmo assim, quando lhe pareceu que as pernas já aguentariam, chamou os outros e combinou a expedição. Só mais uma. Não iam, desta vez, saltar em lianas, brincar aos bandidos ou aos tesouros, nem sequer tomar banho no rio. Era só uma vez e não era para nada disso. Simplesmente, o que tinha que ser feito, tinha que ser feito.

Extrair o caule da terra foi mais difícil do que haviam pensado. Não era um pau espetado no chão; era uma planta com raízes, sem nenhum desejo de abandonar a terra em que nascera. Como vinham sem ferramentas, buscaram pedras, outros paus, quando nada mais resultou cavaram com as unhas até sangrarem. Estiveram nisso quase toda a manhã. Por fim, o inimigo rendeu-se. Desceram a serra, então, em triunfo. O menino a liderar o cortejo, erguendo com as duas mãos o seu troféu, exibindo-o aos passantes que nada entendiam. Quando chegaram ao sopé da serra, onde o cano se bifurcava, mostraram-lhe também o inimigo capturado, e com uma vénia despediram-se da floresta, para sempre.

E assim, agora estavam todos ali, para terminar, com a devida pompa, a história. O menino olhou uma última vez para aquele pedaço do seu paraíso que o traíra, com mais um gesto comprido colocou-o sobre a lenha que já ardia. Agora era só esperar que o fogo fizesse a sua parte.

Mas o fogo, por alguma razão, negava-se. Esperaram e esperaram, a olhar para as chamas, até que toda a lenha foi consumida. Quando o menino remexeu as cinzas, o pequeno tronco continuava lá, quase intacto. Ainda quis trazer mais lenha, montar outra vez o altar do castigo, mas os outros já não alinhavam. Pouco a pouco foram-se levantando, combinando outras brincadeiras, longe dali.  Por fim ficou só o menino, com os seus fósforos, uns poucos gravetos, o inimigo. Que estava verde. E não ia queimar.

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