Os quarenta
O aniversariante percorreu com os olhos os trezentos e
sessenta graus ao seu redor e não conseguiu evitar aquela sensação esquisita.
Era um incómodo, quase um remorso. Na situação em que se encontrava, não era
assim que se deveria sentir.
E no entanto era mesmo o seu aniversário. Fazia quarenta
anos, quem diria. Perto dos trinta e oito afundara-lhe o casamento. Tinham-lhe
levado os filhos, a casa, a mulher tornara-lhe a vida um inferno. Andara tão
desatinado que descuidara o trabalho, perdera negócios, reputação, crédito no
banco. Aos trinta e nove estava encolhido na melancolia como no fundo de uma
cela, sem direito a visitas nem a banhos de sol. Mas tinha sobrevivido.
Nos últimos meses, como o ar que entra pela janela e
simplesmente faz o seu trabalho, a vida retomara os seus direitos. Voltara a
cortar o cabelo, barbeava-se, ultimamente andava até a ouvir música. Olhava o
futuro com a indiferença de uma criança. Deixara cair os braços; não tinha
pressa de nada, até ganhara aquele vício curioso de adormecer de repente, ao
menor sinal de contrariedade. Ao fim de um tempo dera por si a gozar, sem
vergonha nenhuma, esse descanso estúpido e bom.
Quando viu aproximarem-se os quarenta anos, achou que era
boa altura de dar a sobrevivência por consumada e celebrá-la a preceito. E
agora, vejam só, encontrava-se ali.
Olhou outra vez em volta. O mar sereníssimo, daquele
cinzento luminoso dos trópicos, era como um lençol para a sua preguiça. Até
onde a vista chegava estendia-se sem uma ruga, e se às vezes reflectia, lá
longe, junto da silhueta mínima dos coqueiros, algum brilho do céu
esbranquiçado, era só o suficiente para lhe confortar a vista, sem a fatigar. O
aniversariante largou a cabeça na borda do bote, fechou os olhos com um
suspiro, deixou que o mundo acabasse, se quisesse.
Tinha visto por acaso aquele anúncio do cruzeiro no Caribe e
desde então a ideia andara-lhe a passear na cabeça, irreal e distante como um
filme que lhe tivessem contado. Um dia,
sem dar aviso a ninguém, nem sequer a si próprio, pegara no telefone e fizera a
reserva. Na data da partida apresentara-se, de calções e malas feitas, como
quem cumpre ordens superiores.
Não fazia ideia do que se passaria a bordo de um “resort
flutuante para solteiros”, e não se informara. Fosse o que fosse, o importante
é que o passeio daria aos seus quarenta anos uma dignidade marcada e diferente.
Além de conter uma promessa de festa a sério, eventualmente durante os oito
dias e sete noites do folheto, e para mais sem o inconveniente das caras conhecidas,
dos olhares compadecidos, das palmadinhas nas costas que em terra ainda vinham
misturadas com conselhos e palavras de alento.
Nesse particular, podia agora dizer que a viagem saíra
melhor do que a encomenda. O aniversariante sorriu – e quase no mesmo segundo
censurou-se por sorrir – ao pensar como era improvável, ali, no meio daquele
mar que mais parecia uma desmesurada piscina, ser alcançado por qualquer
notícia dos amigos ou da família. Se nem sequer os informara da viagem. Este
ano, portanto, nada de abraços e parabéns burocráticos. Nada de brincadeiras
previsíveis e mornas sobre o seu cabelo que escasseava. Nada, principalmente,
daquelas novas e desagradáveis perguntas sobre casos e namoradas. Eram os seus
quarenta anos. Estava sozinho no seu bote, no meio do oceano. Ninguém sabia o
seu paradeiro.
O aniversariante abriu os olhos, correu-os outra vez pelo
mar em torno. Havia, naturalmente, o barco. Todas aquelas pessoas com quem
tinha andado da manhã à noite, desde que se fizeram ao largo. Os tais solteiros
de que falava o prospecto - embora solteiros, propriamente ditos, não houvesse
praticamente nenhum. Eram todos quarentões como ele, todos com um passado
qualquer que não lhes apetecia comentar, e todos possuídos, desde o primeiro
minuto a bordo, por uma agitação febril de adolescentes fugidos de casa. O
aniversariante pôs-se a recordá-los, rosto a rosto, como se não já os visse há
décadas. Deteve-se em particular nas sardas de uma mulher de Granada, quase
jovem, quase bonita, com quem na véspera estivera quase a namorar. Como era
mesmo o seu nome?
Voltou a apoiar a cabeça na borda e entreteve-se a
recordar-lhe a figura, o colo lustroso
do bronzeado e dos cremes, a maquilhagem um bocadinho carregada, à espanhola,
mas que nela não deixava de ter a sua graça. Do nome é que não havia maneira.
Aliás, nem sequer tinha certeza se o havia esquecido, depois de uma noite tão
cheia, ou se nunca o chegara a saber. Fez um esforço, experimentando sem
sucesso alguns nomes castelhanos. Tentou o abecedário: todos os nomes de que se
lembrava com a letra A, com a letra B e assim por diante. Chegando ao L
desistiu. Era o seu aniversário, não estava para pensar mais nisso.
Nas circunstâncias, aliás, o melhor era não pensar em nada.
Não se mover sequer. Sentir apenas o oscilar da água, tão leve que era preciso
ficar muito quieto, à espreita, para perceber que o bote não estava totalmente
imóvel. Se pusesse um braço para fora também podia receber nos dedos a carícia
do mar, quase morno como de costume, e a correnteza que lentamente parecia
puxá-lo para a costa. O aniversariante entreabriu as pálpebras para confirmar
se era de facto assim. No horizonte, a linha dos coqueiros pareceu-lhe mais
nítida, devia estar mesmo cada vez mais perto.
Cerrou outra vez os olhos. Podia ficar ali para sempre,
gozando a tarde sem ondas, sem vento, sem nada que lhe trouxesse o mais pequeno
desconforto. Mesmo o sol, que até à véspera nunca dera uma trégua, causando
escaldões medonhos nos seus companheiros do barco, hoje resolvera esconder-se
atrás das nuvens, para que o aniversariante pudesse ficar assim, estendido no
seu bote, todo o tempo que desejasse. Não sentia calor nem frio. Olhou de viés
para o canto onde tinha deixado a água e as bolachas. Tampouco sentia sede ou
fome, mas era bom saber que pelo menos por um bom bocado não teria de se
preocupar com o assunto. Teve vontade de
sorrir de novo e desta vez não se conteve. Tinha sobrevivido. Era o seu
aniversário. Alguém lá em cima sabia disso e destinara-lhe, como prenda de
anos, aquele dia finalmente perfeito.
O aniversariante sentiu como o seu corpo ia ficando cada vez
mais mole, a respiração mais lenta, as pálpebras mais e mais pesadas. Não lhes
opôs resistência. Estava quase a deixar-se ir quando ouviu de novo, lá no fundo
do cérebro, aquela voz que teimava. Toda essa doçura nos membros, no corpo,
toda essa paz; não era assim que se deveria sentir. O aniversariante deu um
longo suspiro, como quem apaga uma vela, e adormeceu.
Quando acordou ergueu-se assustado; por uns segundos não foi
capaz de saber onde estava, nem por quê. Não via nada. Só, lá em cima, aqueles
milhões de estrelas sem uma nuvem que as tapasse, e no seu pulso os ponteiros
fosforescentes que marcavam vinte para a meia-noite. Ainda era o seu dia de
anos, portanto. Tacteou pelo fundo do bote até encontrar as bolachas, que foi
tirando do pacote bem devagar, e começou a comê-las com um deleite que nenhum
jantar de aniversário lhe dera antes. Quis continuar a saboreá-las assim,
pomposamente, mas o estômago, despertado, agora tinha uma certa urgência.
Quando acabou de devorar o pacote, abriu a garrafinha de água e bebeu tudo de
uma vez. Tinha muita sede.
Faltava um quarto para a meia noite quando o aniversariante
percorreu mais uma vez com os olhos os trezentos e sessenta graus de escuridão
à sua volta, e estremeceu ao descobrir, atrás de si, mas tão distante que mal a
conseguia ver, uma luzinha que acendia, tornava-se vermelha, depois
desaparecia. Era o farol que vira de madrugada, junto do sítio onde mais tarde,
durante o dia, se desenharam os coqueiros. Só que agora parecia bem mais longe.
Afinal não era para lá que a correnteza o levava.
Aos cinco para a meia-noite levantou-se um vento frio, que o
obrigou a agachar-se no fundo do bote. Quando voltou a erguer a cabeça já não
avistou luz nenhuma, nem qualquer sinal da costa. Sentia fome, um gosto ruim na
boca, tinha a garganta muito seca.
À meia-noite o aniversariante deu a festa por terminada e
preparou-se para a vida depois dos quarenta. Não ia ser fácil. Estava sozinho
no seu bote, no meio do oceano. Ninguém sabia o seu paradeiro. O resort
flutuante, colhido de madrugada por aquela onda enorme e absurda, que tão
subitamente surgira como se fora embora, tinha ido ao fundo. Dos outros
passageiros, os alegres convivas da sua festa de anos, não sabia quais se
tinham afogado, quais andavam também por aí, ao sabor das correntes. Ele, quem
diria, sobrevivera.
Mas já não era o seu aniversário. Empoeirado de estrelas, o
céu sem nuvens anunciava, para o dia seguinte, um sol sem piedade.
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