T1
Ismael
levantou o braço, aproximou o pulso dos olhos mas não conseguiu ver nada. O seu
relógio era ordinário, nem sequer tinha os ponteiros fosforescentes, e a luz
que atravessava a cortina, embora suficiente para não o deixar dormir, não dava
para muito mais. Que horas seriam? Se quisesse mesmo saber, era só virar-se
para trás: por cima da cristaleira, o relógio de parede de Aurora não deixava
nem por um segundo de lhe recordar a sua existência, com aquele tiquetaque que
era uma goteira dentro dos seus miolos. Minutos antes, aliás, quando estava
quase a pegar no sono, fora a porcaria do relógio que o acordara outra vez com
a sua longa badalada, uma só, o que tanto podia significar que era uma da manhã
como indicar uma meia hora qualquer.
Mas
Ismael não se mexeu. Que se fodessem as horas. Se já fossem quatro e meia,
cinco e meia da madrugada, ia ficar tão irritado de estar ainda ali, às voltas
com o lençol, que então é que nunca mais dormia. Se fosse uma da manhã era
pior. Tinha a noite toda pela frente. A noite toda para pensar disparates,
lembrar-se de coisas estúpidas. Ismael sabia muito bem como acabavam essas
noites.
De
modo que enterrou a cara no travesseiro e concentrou-se em manter os olhos
fechados, tentar relaxar o corpo. Comece por sentir a sola dos seus pés, dizia
a mulher de voz arrastada naquele programa de macrobiótica que Aurora estava
sempre a ver na televisão. Bem boa, por sinal, a mulher. Ismael respirou fundo,
sentiu a sola dos pés, tentou deixar de fazer força contra o braço do sofá.
Inútil: o seu corpo não cabia ali. Virou-se num repelão para o outro lado,
puxou outra vez o lençol para junto do rosto, deixou-se ficar de olhos abertos,
a ouvir.
Tinha
muito por onde escolher. Pela janela, que não se podia fechar por causa do
calor, entravam todas as conversas de bêbados, de vez em quando uma briga de
casal, e, quando o eléctrico passava, a metro e meio do peitoril, era como um
tremor de terra acompanhado de fogos de artifício. Cá dentro havia o motor do
frigorífico, com aqueles arranques e silêncios repentinos. E, mesmo por trás do
sofá, zumbia e guinchava, em espasmos, a caixa do elevador, cuja intensa
actividade, àquelas horas da madrugada, dizia tudo sobre o que se devia passar
naquele prédio à noite.
Mas
o pior vinha do quarto de Aurora. Por mais um longo momento, Ismael dedicou-se
a seguir as modulações daquele ruído que nunca dava uma trégua. Às vezes era um
arfar quase suave, apenas entrecortado por uns gemidos baixinhos, como os de
uma criança desamparada. Mas depois o som encrespava, tornava-se um ronco
trovejante, custando a crer que saísse de um simples corpo de mulher. Ismael
cobria o ouvido com a almofada, cerrava dentes e punhos, mas depois voltava à
escuta, fascinado. Contemplar Aurora naquele concerto nocturno, tão grotesco,
que a deixaria tão envergonhada, se ela soubesse, era uma espécie de desforra.
Uma merda duma desforra, mas era.
Pronto,
lá estava ele outra vez. Ismael não queria começar a pensar nessas coisas. Mas
fazer o quê, se não pregava o olho naquele raio de apartamento. Aurora, se
quisesse, podia muito bem morar num lugar decente. Ou pelo menos ter um
sofá-cama a sério, em vez daquela coisa dura de onde o lençol voltara a
deslizar para o chão. Mas ela estava-se nas tintas. Problemas para dormir
via-se bem que não tinha. Estava muito confortável na sua cama, porta
encostada, cortinas corridas, e ainda por cima a ventoinha. Tinha-lhe
perguntado, antes de se enfiar lá dentro, se ele queria a ventoinha. A cínica.
Como se ele fosse cair nessa. O que ela não ia dizer dele depois, se tivesse
aceitado a única ventoinha que havia. Porque naquela casa era assim: um quarto,
uma cama, uma ventoinha. Tudo para ela. Mesmo Sónia, que nos últimos tempos era
o seu ai jesus, podia ficar mas era a dormir no chão.
Ismael
virou-se para o outro lado, fechou os olhos com força, tentou focar a atenção
nos estalidos do frigorífico. Era o que dizia a fulana da macrobiótica:
concentre-se nos sons… concentre-se… até não pensar em mais nada. Qual, mais
nada. Não pensar em Sónia já seria bastante bom. Se começasse a pensar em Sónia
estava tudo estragado.
Para
já, que diabo ela viera fazer ali. A casa nem tinha um lugar onde ele coubesse,
e agora Aurora, para o provocar, ainda inventara essa. Tirar a rapariga da mãe,
trazê-la para ali, para quê? Andara semanas a intrigar, a encher-lhe a cabeça
de porcarias, que a mãe dela isso, que a mãe dela aquilo, até conseguir que as
duas brigassem e Sónia corresse para debaixo da sua saia. Ismael estava a ver o
filme. Com ele fora a mesma coisa: tinha-lhe dito tantas vezes que não, que não
queria vir, não queria viver à conta de ninguém, e ela a tentá-lo. Que a casa
era dele, que era sempre bem-vindo, que com ela é que ele estava bem. Agora era
aquilo, as duas ali, fechadas no quarto, e ele cá fora a ouvir o frigorífico. E
depois ele já sabia: na primeira oportunidade, Aurora atirava-lhe à cara que
sem ela ele não se aguentava, que nem de si próprio dava conta, quanto mais da
miúda. A lata. Só porque tinha dinheiro. Só porque tinha a porcaria do dinheiro,
e ele naquela situação.
Mas
não ia ficar assim.
Deitou-se
de costas, espetou os olhos no tecto, onde a luz da rua desenhava um rectângulo
às riscas. Tentou largar um braço ao longo do corpo, mas o sofá era estreito
demais; o braço ia escorregando pela superfície que o lençol destapara, até
despencar para o chão. Andou nisso duas vezes, três vezes, acabou por enfiar as
mãos para dentro do calção, com o dedo do meio ficou a coçar lentamente os
pêlos.
Não
ia ficar assim.
Aurora
podia falar à vontade, agoirar os desastres que quisesse, mas desta vez não o
ia impedir. Tudo tão fácil: bastava ter o dinheiro do sinal e fechava o negócio
já no dia seguinte. O homenzinho dava-lhe cinquenta por cento. Começavam a
meias o negócio, o homem bancava quase tudo, à medida que o dinheiro fosse
entrando Ismael pagava o resto. Para já só precisava entrar com aquilo:
duzentos contos. Duzentos contitos e já estava. E o sujeito era de confiança,
via-se pela maneira como lhe apertara a mão. Dissera a Ismael que fazia tempo
que o andava a topar, sabia que era esperto, que tinha jeito para os negócios,
só precisava de uma oportunidade. No final da conversa até tinha pago todos os
uísques. Era um tipo fora de série.
Quando
Ismael entrou em casa, nessa noite, vinha tão contente. Era a oportunidade da
sua vida, só duzentos contos, veio lançado a falar do assunto, estava tão
animado que queria pôr música, tirar Aurora para dançar. Mas Aurora nem o
ouviu: mal entrou e já estava ela outra vez aos gritos, que ele fedia a bagaço,
que já tinha prometido parar tantas vezes e depois era sempre a mesma coisa,
que ai meu deus o que é que ela tinha feito para carregar aquela cruz. E quando
ele finalmente conseguiu explicar o negócio, e as ideias que tinha, e os
duzentos contos, o que ela fez foi ir buscar a carteira e agarrá-la contra o
peito, como uma maluca, berrando que nunca mais ele lhe ia fazer aquilo, que
desta vez não ia ser como as outras, ele que fosse trabalhar, que arranjasse um
emprego, em vez de viver à sua custa como um chulo.
E
tudo isso à frente de Sónia. Provocá-lo dessa maneira. Berrar para o prédio
inteiro até conseguir que ele se passasse. Até conseguir que ele lhe desse dois
tabefes, ali bem à frente de Sónia. Aurora mesmo assim não se calava, depois
emendou os gritos com aquele seu choro mole, que lhe ia aos nervos, mas Sónia,
entretanto, não dissera uma palavra. Tinha ficado o tempo todo quieta, grudada
à parede, olhando para ele com os olhos muito grandes, exactamente como sempre
fizera em casa da mãe. Ismael encarou a filha um segundo, dois segundos,
encarou aqueles olhos com força enquanto aguentou, depois baixou a vista. Ela
pintara de preto as unhas dos pés. Já estava vestida para dormir, tinha uma
blusinha de alças quase transparente, um short miudinho, por baixo um corpo que
já era de mulher. Ismael bateu a porta, foi-se embora para a rua.
E agora a melga. O zumbido vinha de longe, começava
fininho lá no fundo da sala, até que de repente era aquela verruma nos seus
tímpanos. Ismael estapeou a cara, voltou a estapeá-la, embora soubesse que só
ia servir para ficar ainda mais acordado. E o pior é que era tudo uma farsa.
Tinha ouvido na televisão: o macho ficava por ali a zumbir, a zumbir, mas não
mordia. Era só para desviar a atenção. Entretanto a fêmea, quietinha, era quem
se ocupava de nos sugar o sangue. Será que Sónia estaria a dormir?
Ismael
não sabia como ela era capaz, com os roncos de Aurora. Mas Sónia era assim,
aguentava muita coisa. Tinha aguentado a mãe, a pancadaria, os berros lá em
casa. Agora levava com Aurora o dia inteiro a vigiar-lhe os passos, a reclamar
do quarto que não arrumara, das horas a que vinha, do que fazia e do que não
fazia. Nem de noite a largava: pusera-lhe o colchão do lado de lá da cama, no
chão junto ao armariozinho onde costumava guardar a carteira. Parecia ter medo
que a levassem.
Ismael
fechou a mão de chofre junto ao ouvido, desta vez sentiu que qualquer coisa
mole lhe ficara entre os dedos. Abriu a mão à frente dos olhos, como se pudesse
ver alguma coisa, mas não podia. Levantou-se. Na casa de banho, antes de abrir
a torneira olhou para o que tinha na palma. Era uma pasta preta, restos de
pernas e asas, mas nem vestígio de sangue. Macho. Ismael lavou a cara, ficou a
olhar para o próprio rosto no espelho.
Quase
quatro da manhã, afinal. Às seis Aurora estava acordada. Todos os dias era o
mesmo. Saía do quarto pé ante pé, como se estivesse muito preocupada em
deixá-lo dormir, mas mal entrava na casa de banho começava a sua sinfonia de
tosses e escarros. Depois acendia a luz da kitchenete, punha-se a abrir e
fechar armários, a mexer em panelas, até que ele se dava por vencido e se
levantava. Aurora, então, com a cara mais lavada do mundo, perguntava porque é
que ele acordava tão cedo, se não tinha nada que fazer.
Ismael
sentou-se na beira do sofá, agora já sabia que não ia mais dormir. O ronco de
Aurora insistia, como um convite. Engraçado. Só de pensar nisso Ismael já
estava outra vez a ofegar, as mãos frias, a nuca rija. E no entanto era tão
fácil. Uma oportunidade assim uma pessoa nem tem o direito de recusar. Ia
preferir aquela vida? Cinquenta anos nos cornos e não ter onde dormir, quanto
mais dar sustento a Sónia. E quem não dá o pão, já se sabe. Amanhã ela começa a
ir com uns e com outros, o capado do pai vai fazer o quê.
Voltou
a ficar de pé, entre o sofá e o quarto, como se ainda não tivesse decidido. Por
fim deu um passo em frente, com o corpo colado à porta começou a empurrá-la de
mansinho, sem ruído nenhum. E então foi como se estivesse ensaiado: bem! bem!
bem! bem! Ismael ficou ali petrificado, sem se atrever a respirar, enquanto o
filho da puta do relógio invadia o quarto com o seu escarcéu. Quando o som
acabou de morrer, pareceu-lhe que o T1 se calara de todo. Já não ouvia o
frigorífico, Aurora parara de roncar. Ismael, agarrado à maçaneta, estava
pronto para vê-la acender a luz, levantar o tronco, olhá-lo bem nos olhos,
ainda mais velha e desgrenhada do que durante o dia. Mas ao fim de algum tempo o
ressonar recomeçou baixinho, tão suave que Ismael, aguçando o ouvido, até
conseguia distinguir, atrás dele, o leve sussurro de Sónia a dormir.
Fechou
a porta com todo o cuidado, como se temesse que o relógio fosse atacar outra
vez. Era um disparate; o quarto, assim, ficava totalmente escuro, era preciso
avançar às apalpadelas, com o risco de derrubar pelo caminho um dos trezentos
bibelôs que Aurora semeava por todo o lado. Guiava-se pela memória: aqui o
cabide com os casacos, a cómoda, em seguida o canto onde ela amontoava o
aspirador e a tábua de engomar, a cadeira com mais tralha por cima, o armário.
Movia-se tão devagar, com uma atenção tão concentrada na respiração das duas,
que o quarto, minúsculo, se distendera. O armariozinho lacado, mesmo junto ao
corpo adormecido de Sónia, estava a quilómetros dali.
Arriscou
um passo, depois outro, na direcção da cama. Quando sentiu a borda, foi
acompanhando com os dedos o desenho da madeira, até que uma coisa mole, rente
ao chão, lhe travou os pés. Ajoelhou-se. O ar em torno era pesado, panos
guardados, talco, hálito humano, um vago cheiro a lavanda. Apalpou o lençol
franzido, com a palma foi percorrendo a superfície do colchão em toda a
largura. Sentia o calor do corpo ali deitado, sem conseguir precisar a que
distância, até que bruscamente recolheu a mão. Sónia também se movera de
repente – mas o ruído que fez em seguida, meio grunhido, meio suspiro, deu a
Ismael a quase certeza de que continuava a dormir. Tinha o coração aos pulos.
Mas agora já não podia voltar.
O colchão ocupava todo o intervalo entre a cama de Aurora
e a parede. O armariozinho ficava lá na frente, na cabeceira. Se se pusesse de
pé, naquele breu, não ia conseguir passar pelo colchão sem pisar Sónia. E ainda
havia, pregada na parede por cima do colchão, a prateleira com o espelho, que
em tempos devia ter servido de toucador, mas agora era mais um altar que Aurora
enchera de santinhos e bonecos chineses. A única forma, portanto, era deitar-se
grudado à parede, esgueirar-se colchão acima sem que Sónia acordasse. O
problema era aquele hábito dela, desde menina, de dormir esparramada, uma perna
para cada lado, o lençol atirado ao canto. E agora já nem era menina: era
aquele corpo imenso a tomar conta do colchão todo. À medida que se arrastava,
Ismael foi sentindo ao longo do peito, da barriga, a pressão de um joelho.
Tocou-o com a ponta dos dedos; era macio. Quando o empurrou para trás, para
poder passar a bacia, Sónia pareceu dar um salto. Puxou o lençol de repente, rodou
sobre o lado, por um enorme instante foi como se estivesse à espera de algo
para continuar a respirar. Ismael ficou à escuta, gelado. Mas além do ronco de
Aurora, que recrudescera, não havia nada para ouvir.
Sónia,
com a mudança de posição, tinha-o encostado ainda mais à parede. Estava deitada
de lado, de costas para ele, e apoiara-lhe na barriga todo o volume da anca.
Ismael percorreu lentamente a pele destapada, até os seus dedos reconhecerem,
no escuro, a curva do quadril. O mesmo short do outro dia. Era amarrado à
frente por um cordelinho que fazia volume à volta de toda a cintura. Deslizou a
mão mais para baixo. Quando sentiu que tocava a coxa, apoiou nela a mão
inteira, com força, para conseguir
chegar um pouco mais à frente. Sónia não se moveu. Agora estavam deitados lado
a lado. Ismael sentia-lhe as pernas, um pouco suadas, colarem-se nas suas. O
cheiro do cabelo. A respiração, que afinal recomeçara, fazia-a crescer e
decrescer sobre a sua virilha.
Mas
o mais difícil já estava. Agora bastava esticar o braço e já alcançava a porta
do armário. Aurora punha a carteira sempre no mesmo sítio, na prateleira quase
rente ao chão, e não costumava haver mais nada lá dentro além do maço de notas
presas por um elástico e um crucifixozinho de metal. Era só abrir e recolher o
dinheiro. Depois desaparecer por uns tempos, voltar já com o negócio feito, o
bolso forrado, e então atirar aquela miséria de volta à cara de Aurora, com
juros. E levar Sónia dali. Pronto, já estava: delicadamente, para não esbarrar
com o cotovelo em Sónia, Ismael puxou o pino de metal. Mas a porta parecia
emperrada, não queria abrir. Voltou a puxar com mais força. Nada. Arrastou os
dedos para baixo, à procura da chave, embora nunca tivesse reparado que aquele
armário pudesse ser fechado à chave. Podia. E a chave não estava ali.
Ismael
voltou a encontrar o puxador, deu-lhe dois ou três solavancos, mas era inútil.
Mesmo assim continuou agarrado a ele, com o braço suspenso por cima da cabeça,
sem saber o que fazer a seguir. O ronco de Aurora ganhara um fraseado
caprichoso, entremeado de sílabas irritadas, como se ela desancasse alguém no
seu sonho. Quando o braço começou a doer, Ismael hesitou um instante, à procura
de um espaço onde o apoiar, até que, à falta de melhor, o largou outra vez
sobre o quadril de Sónia. A pele quente
estremeceu sob a sua palma, moveu-se para o lado; depois, bruscamente, parou. A
respiração também cessara; mas em seguida recomeçou tão diferente, que para
Ismael não havia dúvidas. Era como se estivesse a ver, no escuro, aqueles
grandes olhos muitos abertos.
Pronto.
Era preciso ter azar. Lá estava ele, outra vez, de volta ao mesmo. Deixou a mão
seguir o seu curso, tactear com delicadeza o torso, a alça da blusa, o cabelo
espalhado por cima do pescoço, até chegar à curva do queixo. Por um momento,
com a ponta dos dedos, sentiu a forma dos lábios; pareciam prestes a qualquer
coisa. Ismael fechou a mão numa concha, com um movimento rápido tapou-lhe a
boca.
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