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Mostrando postagens de maio, 2020

O maior do mundo

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Era, de facto, o maior coleccionador do mundo, na sua especialidade. A circunstância de na sua especialidade não haver muitos outros coleccionadores – na verdade, até onde sabia, era o único – não diminuía a constatação. Era o maior, sim senhor, e ainda para mais era o único. Com muita honra, e hoje com uma vaidade que quase o fazia rebentar. O olhar embevecido de Arsénio Vidal percorreu uma vez mais a sala onde guardava a colecção. Do chão ao tecto perfilavam-se as pequeninas gavetas, cada uma com a sua etiqueta e o seu número, todas muito ordeiras no belo móvel em carvalho, parecido com aqueles que há nas farmácias. Mas só parecido. Como o conteúdo era diferente, Arsénio Vidal tivera que mandar desenhar e fazer, de raiz, o seu próprio mobiliário. Tudo, naturalmente, do seu bolso; nada de subsídios nem apoios. Embora fosse uma colecção sem rival no planeta, neste país, já se sabe, estas coisas não contam. Arsénio Vidal deu de ombros, não queria que os ressentimentos viess

T1

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Ismael levantou o braço, aproximou o pulso dos olhos mas não conseguiu ver nada. O seu relógio era ordinário, nem sequer tinha os ponteiros fosforescentes, e a luz que atravessava a cortina, embora suficiente para não o deixar dormir, não dava para muito mais. Que horas seriam? Se quisesse mesmo saber, era só virar-se para trás: por cima da cristaleira, o relógio de parede de Aurora não deixava nem por um segundo de lhe recordar a sua existência, com aquele tiquetaque que era uma goteira dentro dos seus miolos. Minutos antes, aliás, quando estava quase a pegar no sono, fora a porcaria do relógio que o acordara outra vez com a sua longa badalada, uma só, o que tanto podia significar que era uma da manhã como indicar uma meia hora qualquer. Mas Ismael não se mexeu. Que se fodessem as horas. Se já fossem quatro e meia, cinco e meia da madrugada, ia ficar tão irritado de estar ainda ali, às voltas com o lençol, que então é que nunca mais dormia. Se fosse uma da manhã era pior. Tinh

A quadrilha

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Era um dia qualquer de junho, já não sei bem. Sei que tinha treze anos, que o telefone tocou e quem atendeu mandou chamar o meu pai. Ele veio sorridente – do outro lado era uma das suas sobrinhas –   até que lhe disseram o que era e ele ficou coçando a orelha. Meu pai, fiquei sabendo nesse dia, não se expandia nos seus pesares. Comunicou a notícia a minha mãe, que a comunicou a nós todos enquanto ele se retirava para o quarto. Coube em seguida a minha mãe justificar para nós aquele silêncio, o pai é assim mesmo, gostava muito da irmã mas quando essas coisas acontecem ele não diz nada, finge que não foi nada, é a sua maneira de entristecer. Creio que era ainda de minha mãe a tarefa de localizar o meu tio a tempo de lhe dar a notícia. O enterro seria essa tarde, às cinco, no Cemitério de São João Batista. Mas o tio não estava em casa, no colégio onde dava aulas não sabiam dele, e assim ficou aquela preocupação suspensa sobre a nossa mesa do almoço. Eu, que só uma vez tinh

Os quarenta

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O aniversariante percorreu com os olhos os trezentos e sessenta graus ao seu redor e não conseguiu evitar aquela sensação esquisita. Era um incómodo, quase um remorso. Na situação em que se encontrava, não era assim que se deveria sentir. E no entanto era mesmo o seu aniversário. Fazia quarenta anos, quem diria. Perto dos trinta e oito afundara-lhe o casamento. Tinham-lhe levado os filhos, a casa, a mulher tornara-lhe a vida um inferno. Andara tão desatinado que descuidara o trabalho, perdera negócios, reputação, crédito no banco. Aos trinta e nove estava encolhido na melancolia como no fundo de uma cela, sem direito a visitas nem a banhos de sol. Mas tinha sobrevivido. Nos últimos meses, como o ar que entra pela janela e simplesmente faz o seu trabalho, a vida retomara os seus direitos. Voltara a cortar o cabelo, barbeava-se, ultimamente andava até a ouvir música. Olhava o futuro com a indiferença de uma criança. Deixara cair os braços; não tinha pressa de nada, até ganhar

O fogo

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Reunira-os ali porque aquele era o acontecimento mais importante da sua vida. O que, numa vida tão cheia de acontecimentos, como a sua, não era pouco. Tinha havido o dia do temporal, em que o pai tirara do ostracismo o velho bote de pesca para navegarem pelas ruas. Tinha havido aquele inverno em que estrearam a casa. Quando pela primeira vez foram acender a lareira, o que os antigos donos não tinham feito, pelos vistos, durante muitos anos, uma nuvem de morcegos surgiu da chaminé, cobriu o céu por uns minutos e depois veio coalhar o quintal de dezenas de cadáveres, já previamente amortalhados. Tinha havido, nos quinze anos da prima, com a sua chuva de pérolas falsas a gotejar do vestido de princesa, aquele chamado furtivo para uma sala à parte, onde se servira, arregalado e sem limites, de todos os doces que não iriam para as mesas. Tinha havido a viagem à cidade, para ver os bailarinos que patinavam no gelo. O melhor não fora tanto o espectáculo, que mal pudera acompanhar po